José Luiz da Luz
Ponta Grossa / PR

 

 

Pensamento de Deus

 

        

          O que mais Aninha gostava de fazer era fitar as águas de um lago no sítio onde morava.
          - O que vês? Dias e dias em tuas folgas, em vez de brincar preferes que teus olhos brilhem pela réstia das águas - perguntou sua mãe Lumina.
          - Vejo o pensamento de Deus - respondeu Aninha com um sorriso de mistério.
          Há anos aquela era a mesma resposta que sempre passava despercebida, porém naquela tarde, por aquele sorriso enigmático, ecoou como uma explosão dentro da cabeça. Afinal, ver o pensamento de Deus não era uma resposta que se esperasse de uma garotinha de apenas dez anos, teria que ser investigada. Lumina rastreou seus passos para descobrir algum envolvimento com grupos esotéricos perniciosos, porém tudo estava normal. Restou a suspeita de que aquele lago estivesse guardando algum mistério capaz de hipnotizá-la com suas águas espelhadas, produzindo um transe repleto de imagens sombrias. Aquela ideia seria de difícil comprovação, entretanto sem evidências a única ação se restringia a uma apurada observação.  
          Aquela cena das horas de folga sempre se repetia: Aninha sentada na relva com os olhos quase sem piscar fitando as águas. Era um olhar perfurante, quiçá devia ter o talento de um gênio capaz de rasgar as águas penetrando nos segredos do astral. 
         Lumina escolheu uma noite escura, sem lua e sem lume, para em silêncio fazer algumas manobras para quebrar o fascínio do lago. Munira-se durante a semana de itens que considerava sagrados: uma garrafa de água benta, restos de velas de um altar, um crucifixo de metal, flor de Liz, etc... Foi na alta madrugada, aproveitou-se do sono profundo de todos para jogar no lago o que julgava ser sua poção sagrada, com a finalidade de neutralizar aquele estranho fascínio. Sabia que era difícil tampar o rasgo nas águas por onde transpassam os olhos dos magos, videntes e crianças, mas esperava dar fim.
          O dia amanheceu tenso, Lumina ansiosa controlava cada gesto da filha, cada respiração, e se possível fosse entraria em sua cabeça para algemar seus pensamentos.
          Na hora do crepúsculo Lumina ocupou-se com os preparativos do fogão a lenha para o café, quando retomou à mente a lembrança do lago, sentiu um choque no coração. Olhou com o peito arquejante. Ela estava lá. Sim! Aninha estava lá.
          - O que vês? — bradou ainda no caminho, antes mesmo de chegar.
          - Vejo o pensamento de Deus — disse com a serenidade de sempre.
          Lumina voltou desapontada: “oh Deus! Não funcionou”. O fracasso fez doer todos os ossos do crânio saturados por pensamentos de pânico. Não poderia repreendê-la por causa de uma hipótese, além disso, Aninha era um anjo de amor. E se fosse verdade, qual seria o pensamento de Deus? Era o que relutava aceitar, optava por crer que o lago era amaldiçoado. Qual mistério se esconderia à sombra de uma água, onde tem revelações somente para algumas pessoas?
          Sob o pretexto de passearem na Praça das Acácias, ordenou ao capataz que na ausência aterrasse o lago usando um trator, e que mediante gratificação assumisse a culpa. Aninha se aprazia entre as flores, Lumina sofria temendo as doloridas lágrimas da filha. Sentia-se traidora, mas não via alternativa.        
          Retornaram a noitinha, logo que o aterro se fez visível, enquanto Lumina suava a garotinha admiravelmente apenas teceu um sereno comentário de que o lago era tão lindo. Lumina se trancou no quarto a chorar, Aninha ficou no lago aterrado, sentou-se na terra úmida e se pôs a olhar as estrelas.
          - O que vês no céu? - perguntou Lumina depois de superar as lágrimas.
          - Vejo o pensamento de Deus — disse com a mesma serenidade.
          Lumina estremeceu. Se havia providenciado tampar o lago, como haveria de tampar as estrelas? Ela via o pensamento de Deus em toda parte.  Depois sussurrou para a garotinha entrar porque o frio arrepiava.
           A madrugada pesava, porquanto ainda na cozinha as lágrimas eram abundantes naquela face, onde as rugas começavam a aparecer.  
          - Se não é sonho, Deus, mostra-me também o que pensas.
          Aninha acordou, levantou-se e acariciou as tranças grisalhas da mãe e riu de amor.
          - Que testa fria, mamãe, o que te aflige?
          - Filha do meu coração. Diga-me se eu te pareço digna de tua pureza, como vês no lago e nas estrelas o pensamento de Deus?
          - Sempre devemos começar pelo lago, pois ele reflete a nós mesmos. Este lago reflete tudo o que eu faço: se levanto um braço, se aceno ou sento... tudo o que eu penso e faço ele reflete fielmente. Nunca vi um reflexo mentir. Por isso devemos pensar coisas boas; mas reflete também os pássaros, as estrelas, o mundo... aí posso ver o sagrado pensamento de Deus.
          - E as estrelas? Diga-me, anjinho do meu coração - Lumina perguntou suspirando.
         -É assim o universo - Aninha tinha um sorriso cheio de harmonias. - É o reflexo do pensamento de Deus. Tudo que há é ilusão: estrelas, cometas, mundos... o que vemos e o que não vemos, apenas reflexo, o que existe de verdade está no mundo de Deus. O universo inteiro não é nada mais do que um grande lago que reflete os pensamentos e o mundo de Deus.
          Aquela era uma lição profunda demais para Lumina. Com quem Aninha aprendeu? Ninguém sabe. Certamente era um anjinho que desceu do céu. Dizem que de tempos em tempos um anjo nasce na terra para nos alegrar.
          Após alguns dias, na hora do jantar Lumina voltou a perguntar.
          - Qual a diferença entre olhar para o lago e olhar para as estrelas?
          - No lago olhamos de cima para baixo, fazemos gestos como um criador; nas estelas olhamos de baixo para cima, somos a criatura do verdadeiro criador. Quem quiser começar a ver o pensamento de Deus, deve começar pelo lago, pois assim conhece primeiro a si mesmo.
          Passados alguns dias Lumina pediu para que o capataz refizesse o lago. Estava disposta a começar.

 

 

 

 

 
 
Poema publicado no livro "E daí?... Como ficamos?..." - Edição 2019 - Janeiro de 2020