Teresa Cristina C. de Sousa
Piracuruca / PI

 

 

As crianças encantadas

Para Gerina, que tão cedo foi levada desta vida.

 

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AS FLORES MISTERIOSAS

Havia uma pequena vila perto de uma igrejinha com algumas casas, todas pintadas de cores diferentes. Em quase toda ela morava uma família com crianças de tenra idade. E o colorido da vila era bonito de se ver! Mesmo quando seus moradores não estavam em dias alegres, como em nenhuma outra localidade. Eles sabiam bem como fazer a cor em cada casa, mesmo nas mais antigas... E como era bela de se ver a casa da infância cheia de tons, os mais variados possíveis!... Um lugar extremamente adorável como um caminho aberto ao sonho, uma braçada de pensamentos bons, uma imensidão de olhares perdidos na fantasia...
Todavia, eles tinham uma grande fatalidade – quando as crianças da vila atingiam a idade de onze anos, eram levadas para a cidade vizinha, distante vários e vários e quilômetros! E, se voltavam não se sabia notícias (ao menos não comentaram ainda)... Para ser exata, havia sempre silêncio em torno disso. Mas que partiam, não se tinha dúvidas.
­­            - Quantos anos já tem essa menina? – interrogava o padre. – E esse menino, já está tão grande, faz onze anos quando?
            As mães viviam negando a idade dos filhos, embora soubessem que pela data de batismo o pároco da igrejinha podia ter a idade certa de cada um. Mesmo assim, ele sempre perguntava.
- O santo padre sempre pergunta a idade de nossos filhos – falou mais para si uma mãe, enquanto colocava a roupa para secar no varal comunitário.
As outras mulheres que estavam por ali ficaram mudas, suspirando de tristeza. O padre era tão bom samaritano, um excelente pregador da palavra de Deus, sendo querido por todos da vila. Todavia, havia no ar, nunca diziam em voz alta, a firme certeza de que as crianças partiam aos onze por intermédio mais do padre.
Os homens da vila também se fechavam em torno do assunto e nada ponderavam a respeito, como se houvesse um pacto - o mesmo desejo de todos na vila. E se uma esposa interrogava ao marido, diziam:
- Quer, por favor, mudar de assunto? Já sabemos que essa conversa não leva a nada, já que não tenho melhor resposta, que é a de sempre. – falavam num olhar lento como a voz.
E procurava saber de algo relacionado a casa; perguntava das crianças – se tinham se alimentado direitinho, se tinham brincado...  Ou se estavam bem de saúde...
Mas o que todos tinham plena convicção era de que as crianças precisavam partir quando completavam onze anos de idade. Ai, que ela (ou ele) já vai fazer onze anos? Como o tempo passa rápido, meu Deus!

Silêncio na casa –
Uma conversa indiscreta
Chama a atenção

E não estavam enganados! Aninha, aos sete anos, desconfiou que a casa dela guardava um grande segredo. Havia sons ditos bem baixos, olhares que se cruzavam, idas à igreja e longas conversas com o padre, sempre com o cuidado de ela não estar por perto.
Sua avó Maria, uma senhora bondosa e sorridente, também estivera assim há alguns meses antes de sua prima Gerina partir.
Não se recordava direito. Mas sabia que era um dia de sol, pois tinha boa lembrança do vestido leve que a prima usava. Também havia alguns vizinhos na casa além dos familiares. Houve abraços e muito choro. Uma partida sofrida e sem retorno, pois não vira mais a prima desde então. Ainda falaram muito de Gerina. E, fato curioso, no jardim da igreja nascera mais uma flor! 
Essa flor, de uma cor azul esverdeada, quase como se a água do mar se fundisse com o céu, exibia sua beleza já há alguns meses. Data em que a menina Gerina tinha partido após a chorosa despedida. Assim, Aninha concluiu que devia haver forte ligação entre os dois fatos. Principalmente quando se sucedeu o seguinte: 
Pouco tempo após a partida de Gerina, o pai da menina decidira pintar as paredes externas da casa com a cor da flor. Esse episódio, comum na vila – chamou mais a atenção de Aninha -, sempre havia uma residência com a cor característica da flor surgida no jardim da igrejinha após a partida de uma criança.
Em vez de sentir medo por esse mistério, Aninha resolveu investigar. Obviamente, a menina perguntou se havia relação entre os dois assuntos...
- Não precisa me negar, vovó, eu já entendi que Gerina é agora uma flor! Gerina foi encantada! Ela e todas as meninas e meninos amigos dela!
E como estava certa! Sempre que um menino ou uma menina atingia esse tempo de vida, nascia uma flor no jardim da igreja. Misteriosamente esse fato ocorria no exato instante em que os pais de uma criança comunicavam ao padre que esta havia partido.  
O mistério envolveu a menina – aquelas flores da igreja tinham por que tinham uma relação com a partida das crianças -, que por noites e noites sonhou com crianças encantadas, flores misteriosas... Cores, casas, choros...
Havia um mistério sim na vila! E tinha de descobrir!...

 

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UMA MENINA CURIOSA E OUTRA MENINA

A vila era bela mesmo! Suas casas coloridas e, num nível mais elevado, num morro, ficava a igrejinha. Esta, no alto, tinha um jardim multicor. E num espetáculo para a vista, podia-se sentar nos banquinhos de madeira ao redor dos canteiros de flores. De frente para a igreja, no sentido Leste, havia um rio. Para além deste só alguns homens iam para caçar. No lado oposto à entrada dela, uma estradinha de terra batida – meio de comunicação com cidades e outras vilas.
- Venha, Lúcia! – gritou Aninha parando na descida da igrejinha. – vovó Maria nos espera para o lanche.
Lúcia não respondeu, olhava as flores do jardim e se inclinou para dar um cheiro em uma delas. Aninha teve a nítida impressão de que a irmãzinha conversa com a flor. Às vezes, vinha-lhe esse pensamento quando Lúcia ficava debruçada sobre as flores. Não devia ser nada, uma menininha de cinco anos tem momentos de afastamentos da realidade, fica presa no mundo da fantasia ou consigo mesma, igual ao beija-flor que agora voava parado no ar... Ele devia estar pensando no sabor da flor que olhava, antecipando-o... Assim estava Lúcia – com o olhar capturando a cor das flores...
Aninha chamou-a mais uma vez, no que foi atendida.
E chegaram à casa da avó. Uma mulher alegre, conversadeira; com muitas histórias infantis e de mistérios. Julgava-se que ela soubesse do nascer do Sol nas margens do rio até quando as ruas ficavam escuras e a vila era iluminada por alguns postes de madeira colocados ao longo do caminho subindo para a igrejinha.  E uma menina curiosa não perde a ocasião de perguntar e de perguntar...
– Vovó, sabe que tenho anotado em meu bloco de papel as cores de algumas flores do jardim da igreja? Posso perguntar à Senhora por que a maioria das flores tem a mesma cor que as casas da vila? – a avó suspirou. – Não quero ser muiiito curiosa, todavia tenho razão ao dizer que as flores da igreja são crianças encantadas, não é?
A avó queria falar, gesticular, mover os lábios fazer com que a menina se calasse e a ouvisse – poderia dizer a Aninha que sua imaginação estava muito fértil; queria dizer-lhe que a conversa era longa – de um adulto para uma menina maior...
A avó apenas se calou. As crianças têm mesmo uma imaginação muito fértil e ela não podia fazer desse interrogatório algo que levasse a conversas mais delicadas, com assuntos que ainda não podiam ser ditos... Não era a hora ainda!...
Mas Aninha não desistiu. Abriu bem os olhos, forçou um sorriso brincalhão, e voz saiu com receio de ser repreendida.
– As crianças, vovó... – baixou bem o tom – As que vão no carro, quase sempre no do padre, elas são encantadas e se transformam nas flores da igreja... nããã.. o, é?
Riu ligeiramente, para disfarçar uma espécie de nervosismo que se apoderou dela, os olhinhos começando a ficar marejados e um nó na garganta impedindo-a de falar.
A avó perguntou por Lúcia e caminhou pela casa. Aninha ficou por um instante sentada na ponta do sofá onde estivera conversando com a avó, depois respirou profundamente e caminhou também pela casa em olhares de busca pela irmãzinha...
A avó sorria, os lábios finos ficaram mais finos ainda, e a voz tinha o encanto de quem ama.
–Veja, Aninha! Sua irmã está pensando que é borboleta ou passarinho correndo de braços abertos no quintal! – a mulher dizia baixinho para quebrar a fantasia do momento...

Sol do amanhecer –
Uma menina parece
Suspensa no ar

E Aninha sorriu também, esquecendo-se de que a avó não lhe respondera nada.
E por fim, correu em direção à Lúcia e foi brincar de faz de conta também...

 

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UMA ORAÇAO

Inicio de novembro, e as aulas quase terminando na escolinha da vila.
Aninha de cabelos molhados, corpo esguio e uma vivacidade nos pequenos olhos, se fossem maiores eles estariam abertos assim para a professora também.
– Verdade, professora! – disse como um vento gostoso antes da chuva. – Minha prima está voltando da looonga viagem que tinha feito. Minha avó Maria é quem está mais feliz. – e continuou mesmo com olhares atônitos dos colegas. – Ela teve uma febre muito alta, mas agora está bem e resolveu voltar...
– Isso quer dizer que ela abandonou os estudos? – questionou a professora.
– Escola? Eu não sei disso... – Aninha parou. Não completou o pensamento, a cabeça estava cheia de perguntas. Sempre tinha um questionamento, uma hipótese, uma descoberta.
– Podemos ter problemas agora. – a professorinha disse mais para si. Ou havia se esquecido de que a menina era curiosa por natureza.
Corria um vento brando, com o sol escondido por trás de umas nuvens.

Quase meio-dia –
As crianças nas calçadas
Dão sons aos caminhos

– Não corra, Lúcia! – gritou Aninha outra vez. – Ontem você caiu quando topou numa pedra, lembra-se? – a voz de Aninha riscou no meio da algazarra das crianças. Todavia, nenhuma parecia ter notado o tom gritante. Sempre era assim, até quando cada uma delas ia para casa e ficavam somente as duas – Aninha e Lúcia moravam na última casa que tinha criança em idade escolar. E pronto. Não falavam nada do ocorrido em casa. Era uma espécie de acordo. O caminho da escola até a casa era algo delas. Não havia o que contar. Somente duas irmãs vindo da escola, mais nada.
Nem choveu, apenas uma tarde branda em pleno verão.
À noitinha, a mãe levou Aninha à igreja. Toda noite de quarta-feira havia as orações das senhoras para a Virgem do Carmo. Um dia a menina precisou ser acordada após as homilias, pois dormia num banco da igreja. Hoje não. Hoje ela iria descobrir o mistério das flores. Humn, que a noite seria de investigações! Quase não conseguia disfarçar da mãe a curiosidade que formigava em seu cérebro infantil.
Olhares e fiscalização. A menina não parava de andar na igreja. Foi até advertida pelo padre.
– Aninha, sente lá no jardim, minha querida! – suspirou o pároco, mas com uma irritação na voz, isso era evidente.
Tum, Tum! Os passos pequenos na areia batida do jardim. Era tanta flor linda! Umas murchas ainda do calor da tarde; outras bem abertas ou com seus botões.
Aninha estava distraída com algumas flores pequeninas em formato de coraçõezinhos que subiam pelo muro da igrejinha aproveitando as paredes de tijolos. Dava um charme ao local e uma tranquilidade! A beleza das flores fazia a alma brotar um sentimento de paz, que Aninha sentiu a respiração se tornar lenta como o vento que agitava as folhas no jardim. A criança se sentou num banco de madeira que havia próximo a um roseiral, cantarolando a música que vinha da igreja. Súbito o padre iniciou uma mensagem.
– Hoje sabemos que Deus sabe de nossas fraquezas, que Ele entende nossas necessidades. Não há como negar que somos humanos e que temos medos. Todavia sem Ele não poderíamos superar nossos temores e nos abastecer da fé. É um momento de cicatrizarmos nossas feridas e orar por esperança. O amor de Deus sempre nos mostrou que nossas crianças são fortes e que são inteligentes! São crianças encantadas!...”
O coração de Aninha disparou. Essas palavras se infiltraram em seu cérebro e giravam, rodopiavam, revolviam os pensamentos e tornavam a embolar nas ideias como um redemoinho de areia que subia e descia...
“Por que estamos orando? Que medo nos faz pedir Fé e esperança? Deus sabe que nossas crianças são corajosas, pois abandonam o lar e vão estudar na cidade longe dos familiares. Deus as protege e as guarda; também as traz para casa quando é necessário. O que trouxe nossa criança Isabel de volta foi a graça de Deus. Ele sabe o melhor para nós!”
Aninha manteve-se recostada numa parede interna da igreja e se aconchegou mais estremecendo levemente. Não teve tempo para pensar. Era só sentimentos e um peito agonizante de verdades que cresciam dentro dela.
As orações terminaram e as mulheres foram em silêncio para casa. O caminho de volta. Que importa caminhar em silêncio? As palavras podiam esperar...
Assim, naquela noite, o pai de Aninha explicou que quando as crianças da vila atingiam a idade escolar do ensino fundamental maior, precisavam ir para a cidade, pois na vila só havia uma professora. Quem sabe ela, Aninha – a curiosa, não fosse um dia professora da vila?
E as flores do jardim da igreja? Não havia explicação maior que o amor que o padre tinha pelas crianças e lhes dedicava uma flor no jardim em reconhecimento à coragem e à vontade de estudar. E nunca esquecia uma. No tempo dela também haverá uma flor. Um girassol iria sugerir. Adorava rodopiar!... E ser um girassol seria um encanto!

Inda é novembro –
Crianças brincam na rua
De esconde-esconde

 

 

 


 




Conto publicado no "Livro de Ouro Contos "- Edição 2021 - Outubro de 2021

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