Letícia Alvarez Ucha
Porto Alegre

 

Em busca de uma razão

 

 

         Jéssica havia finalmente saído de casa. Foram anos sendo vítima de violência doméstica. Da última vez o seu companheiro foi preso em flagrante durante a agressão.
Nunca teve apoio da família quando apanhava. Aproveitou o pagamento pelas faxinas que fez e comprou uma passagem. Uma de suas patroas, sensibilizadas com o seu problema, lhe dera uma quantia razoável para que ela pudesse encontrar algum quarto em pensão na nova cidade.
         O lugar não importava, apenas precisava ser longe. Comprou uma passagem de ônibus para São Paulo. Não avisou ninguém. Enquanto o veículo se deslocava ela fechava os olhos na esperança de esquecer tudo que vivera até então.
         Ao sair da rodoviária viu do outro lado um prédio simples onde dizia que alugavam-se quartos. Conseguiu uma vaga. Dias passaram e Jéssica procurava algum emprego como auxiliar de limpeza ou cozinheira.
         A busca era incessante pelo trabalho mas sem êxito. Um dia durante uma entrevista, Jéssica desmaiou e vomitou. Foi levada ao Pronto-Socorro e descobriu-se grávida de gêmeos.
Ela levou um susto pois não pretendia ser mãe naquele momento, ainda mais sem trabalho. A possibilidade de voltar para seu ex-companheiro violento era totalmente descartada.
Saiu sem rumo pelas ruas da cidade sem saber o que fazer. Ficou com medo  que a dona da pensão não aceitasse sua condição.
         Um dia enquanto lanchava  no bar na rodoviária viu reportagem na TV falando sobre venda  ilícita de bebês a europeus. Ficou  tão aflita que engasgou-se com o pão na chapa que estava comendo.
         Chegando à pensão pediu emprestado o computador e começou a pesquisar e encontrou anúncio de casais europeus se dispondo a pagar por bebês. Mandou e-mail a vários.
Alguns lhe responderam em alemão, inglês .... não entendeu nada. Até que um casal português lhe respondeu. Estavam dispostos a pagar. Jéssica explicou que eram gêmeos e que pretendia ficar com um bebê, mas não tinha condições de manter-se até ao final da gravidez pois estava desempregada.
         O passado de agressão física comoveu Eleonora a portuguesa que estava disposta a pagar o que fosse preciso para realizar seu sonho. Acabaram entrando em contato por vídeo- chamada através de uma rede social.
         Acabou surgindo uma amizade entre as duas. Já José, o marido da portuguesa, não queria saber de contato, apenas negócios.
         Ficou acertado que o casal mandaria um valor para que Jéssica se mudasse e pudesse ter seu filho em um apartamento alugado, mas que somente ela se vivesse. Em troca, ela ficou de enviar os exames durante a gravidez para provar o desenvolvimento sadio.
         Os meses passaram, Os bebés, gêmeas univitelinas nasceram e Jéssica os levou para casa.
         Recebeu uma ligação do casal português. Combinaram o local da entrega de uma das crianças. Jéssica só conseguia pensar no dinheiro que iria receber. Quando estava  passando para os braços de Eleonora a sua filha sentiu um aperto no coração. Uma lágrima escorreu em sua face.. Choro engolido.          O medo de não ter como sustentar as duas crianças era maior. Afinal uma delas estava ficando com ela, não seria tão ruim assim.
         Pediu para que a portuguesa enviasse por e-mail foto da menina para que ela pudesse ver como estava crescendo. Eleonora virou-se rapidamente e tentou dar um sorriso, mas acabou mordendo os lábios e saiu sem dizer nada.
         Às vezes, Jéssica mandava e-mail mas Eleonora nunca respondera. O tempo foi passando e a lembrança da outra filha e o desejo de vê-la foi diminuindo.
         De auxiliar de limpeza, teve uma chance como cozinheira. Com seu talento para comida caseira, surgiu a oportunidade para um curso de Culinária pago pelo restaurante onde trabalhava.
         A vida foi melhorando, os anos passaram mais precisamente quatorze anos. Um dia chegando em casa, toca o celular. Quem seria aquela hora, pensou.
Bastou falarem seu nome para identificar: com o sotaque inconfundível português , Eleonora foi logo falando que precisava falar urgente com ela:
         - Você precisa salvar sua filha! – disse em tom desesperador.
         - Por anos pedi foto da menina por e-mail e não obtive resposta. Agora o que você quer?
         - Joana está com leucemia e não está encontrando doadora compatível. Somente a tua filha que é irmã gêmea dela pode ajudar.
         Jéssica não diz nada. Sentiu uma pontada no estômago. Teria a garota ficado doente se ela tivesse vivido junto a irmã e cultivado os mesmos hábitos. Faria diferença isso ou nada disso modificaria o quadro atual.
         Eleonora prossegue.
         - Eu e Joana já estamos no Brasil. Não precisa as meninas se encontrarem. Basta que a tua filha doe a medula para a irmã. Ninguém ficará sabendo. O segredo ficará entre nós. Qualquer coisa, diremos que elas são apenas parecidas por coincidência caso, alguém desconfie.
         - Preciso pensar. Me ligue depois – pensou Jéssica
Jéssica sai pensativa e triste. Lara a gêmea que ficara com ela poderia não perdoá-la se descobrisse que foi enganada sobre a existência de uma irmã e ainda mais gêmea! Por outro lado, era uma maneira de se redimir afinal tinha vendido a outra filha. Nem o nome  da menina sabia.
         Começa a chorar. A janela bate com o vento. Sinal de chuva chegando. Raios no céu. Anoitecer e Lara não havia ainda chegado do colégio.
         Falta luz. Um reflexo de luz surge entre a porta. Lara chega com a lanterna do celular ligada.
         Comenta que teve que subir de escada por causa da falta de luz. A mãe segue atônita. Jéssica resolve então contar que recebeu uma ligação de uma amiga de anos que sua filha necessitaria de uma doação de medula e sugere que as duas vão ao hospital para que sejam doadoras.
         Lara estranha o jeito da mãe, mas não se opõe pois estava fazendo no colégio um trabalho sobre a importância desse tipo de doação.
         Eleonora liga no dia seguinte. Com frieza Jéssica marca a ida ao hospital mas pede para que Eleonora cuide para que as meninas não se encontrem.
         Após o material ser coletado, mãe e filha já caminham pelo corredor para irem embora quando Lara decide ir ao banheiro. Jéssica se irrita, mas a menina vai.
         Pergunta a uma enfermeira que está empurrando uma cadeira de rodas onde fica o banheiro e deixa cair o óculos que estava pendurado na sua blusa.
         Se abaixa para pegá-lo e quando vai se levantando se depara com o rosto da paciente que estava sendo levada: sente um calafrio. Olha e vê como se fosse um espelho o rosto igual ao seu, porém a expressão era triste. Rosto triste  e debilitada com pensamento longe nem vira que estava diante de alguém idêntica a si.
         Jéssica chega e leva um susto: a filha que nunca mais vira e vendera ainda bebê estava ali frágil novamente diante dela sem que não pudesse fazer nada.
         A enfermeira não percebe e continua seu caminho com a paciente.
         Lara puxa a mãe pelo braço e cobra explicação. No canto do corredor há uma saleta e elas entram. Jéssica caminha até a janela e começa explicar.
         Quando jovem havia sido espancada pelo marido várias vezes sem que a família lhe desse apoio. Na última vez da agressão foi tão forte que ele foi preso e ela resolveu fugir.          Contou que foi um susto a gravidez de gêmeas e que não tinha como sustentar as duas. Então, optou por vender uma  das gêmeas para um casal europeu que lhe daria dinheiro e possibilidade de poder criar uma filha pelo menos.
         Lara não aceita e se revolta. Todo esse tempo tendo uma irmã que morava do outro lado do mundo e ela não sabia.          Agora descobrir quando essa já está seriamente enferma. Acusa a mãe de frieza pois não nota arrependimento.
Jéssica se defende alegando que as duas poderiam estar mortas porque ela não tinha como sustentá-las. Lara não aceita o argumento e diz que mesmo pobres dariam um jeito.
Jéssica liga para Eleonora e conta o incidente. As três se reúnem na cafeteria do hospital.
         Lara as acusa de bandidas. Eleonora pondera e diz que elas eram mulheres com dificuldades e ambas resolveram colaborar uma com a outra. A portuguesa reconheceu seu erro mas disse que seu maior sonho era ser mãe e não estava conseguindo e seu casamento estava em jogo. Contou que Joana foi a luz que ela precisava em sua vida. Jessica também foi beneficiada na visão dela porque conseguiu moradia digna e criar sua filha. Lara não se conforma e quer ver a irmã.
Conversam e chegam a decisão que seria muita emoção para Joana que vive um momento delicado.
         Combinaram de contar somente depois do tratamento.
         Dias passaram e o resultado saiu: Joana era compatível com Lara e foi possível ser feita a doação de medula. Alguns meses se passaram e o encontro das meninas foi organizado.
Joana estava tão feliz por estar se recuperando que resolveu compreender os motivos que levaram a mãe biológica e adotiva a agirem dessa forma. Lara achava repugnante vender uma filha mas tinha pena da violência doméstica que a mãe havia sofrido e se esforçava para aceitar o que havia sido feito.
Quando as meninas se encontraram se abraçaram e choraram de emoção. Quiseram uma saber tudo da outra. Em alguns gostos se identificavam e noutros eram opostos. Foi nascendo uma grande amizade entre as irmãs e entre as mães.
         Ambas reconheceram seus erros mas chegaram a conclusão que foram motivadas pelo amor.
         Joana voltou para Portugal mas agora ela recebe nas férias a sua irmã brasileira. Vivem se ligando e falando por chamadas de vídeo. Uma perdoou completamente o que as mães fizeram. A outra apenas tolera o fato, mas agora são mais felizes porque sabem que poderão contar uma com a outra para sempre.

 


 




Conto publicado no "Livro de Ouro Contos "- Edição 2021 - Outubro de 2021

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