Eliane Maria Vani Ortega
Regente Feijó / SP

 

 

Três vidas




Um velório no ano de 2020. Cidade pequena do interior. Salão com três salas amplas e uma planta com folhas verdes. Este salão é administrado pela única funerária da cidade. Em geral o velório acontece numa das salas. Dificilmente numa cidade pequena morrem dois no mesmo dia. Mas desta vez foi diferente. Foi no mês de agosto. As três salas estavam ocupadas. Três vidas que se foram e naquele espaço, familiares e amigos se encontravam numa aglomeração obrigatória num período em que não deveria haver aglomeração. Na primeira sala, um senhor de 99 anos. Uau, quase 100 anos. Como terá conseguido essa proeza? Não bebeu, não fumou, não comeu torresmo? Não saberemos. Ele se foi e não tinha quase ninguém na sala em que jazia seu corpo com poucas flores, um amigo  e dois desconhecidos que foram conferir quem era o defunto. Alguns familiares chegaram para tentar preencher o vazio da sala. Rostos aliviados provavelmente por enfim descansarem da tarefa de cuidar de um idoso aos 99 anos. Ou não. Talvez alguma herança em jogo. Não saberemos. Na sala do meio, um rapaz de vinte anos. Nossa, tão jovem! Morreu em razão de um tiro na cabeça. Alguns dizem que ele era conhecido da polícia, que foi briga por coisas ilícitas. Talvez sim. Talvez não. Um garoto pobre de 20 anos, provavelmente uma vida de dificuldades que culminou numa morte violenta. Ao lado do caixão  a mãe, sempre a mãe. Também chorava a namorada e alguns amigos. Na terceira sala, um rapaz de 36 anos. Não me era estranho. Terá sido meu aluno? Talvez. Muito jovem e inerte, com um corte no rosto e com semblante tranquilo. Parecia dormir apenas. Um acidente de carro roubou-lhe a vida. Os pais, irmãos, esposa, filho e muitos amigos e conhecidos da pequena cidade aglomeraram para velar o corpo do jovem. Três vidas. Um funeral. Um funeral no ano de 2020. Três dentre aproximadamente cento e trinta mil mortos pela pandemia de Covid-19 de março a setembro. Ao observar o cenário já descrito, algumas constatações. Todos de máscara. Não pode aglomeração, mas nesse caso, o velório tem maior êxito se aglomerar. As pessoas parecem confusas. Não sabem se apertam a mão dos familiares. Alguns apertam e disfarçadamente se dirigem ao local em que está o álcool setenta por cento para higienização das mãos. E o abraço? Como não abraçar a jovem de olhos azuis que chora copiosamente? As lágrimas molham a máscara. Como ficar distante do irmão que chora desesperadamente sem compreender a ousadia da morte ao levar seu irmão tão jovem. A máscara atrapalha o choro, tão importante no funeral. Como velar nossos mortos sem chorar, sem abraçar? Retiraram o direito de digerirmos as perdas num tempo específico para tal. Talvez, devêssemos incluir no novo modelo de funeral uma placa com os dizeres: É proibido morrer!



 




Conto publicado no livro "Fato ou ficção?" - Contos selecionados
Edição Especial - Setembro de 2020

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