Maria Rita de Miranda
São Sebastião do Paraíso / MG

 

 

Vida que passa




          Nascida no início da década de 1950 e pertencente a uma família patriarcal, não assimilava muito bem o que a vida me oferecia.
          Desde menina, observava a diferença de tratamento entre filhos e filhas. Aquilo me incomodava, pois afinal não éramos todos iguais? Ao mesmo tempo ‘aceitava’ a situação, visto que se assim era, assim seria. Mas no meu âmago já sentia uma revolta que se transformou em mutismo. Se eu não podia opinar o que pensava, melhor me calar.
          Desse modo me tornei jovem. Sempre muito observadora e focada no meu próprio mundo. A leitura era a minha salvação. Criei com ela um universo próprio.
          Assim via o tempo passar me sentindo isolada e travada. Incapaz de me rebelar. Mais tarde descobri o que era comum à época: terminar os estudos e se casar. Não fugi à regra.
          O meu casamento, duradouro, foi cheio de altos e baixos. Assumi dupla jornada de trabalho, em casa e fora, pois a situação assim o exigia.
          A minha mente não melhorou. Eu passava por um turbilhão que, muitas vezes, me deixava infeliz. O que fazer, pensava com certa revolta. A vida para a mulher era assim mesmo?
          Toda a conturbação veio à tona muitos anos depois com a crise do pânico. Sofri muito até descobrir que estava mentalmente doente. As crises me faziam sentir à beira da morte. Só depois de anos de tratamento pude me livrar dos remédios. Até hoje me policio.
          Para mim a redenção veio depois da dita terceira idade. Comecei a frequentar ambientes com os quais me identificava. Passei a ser eu mesma. Dava opiniões, ouvia narrativas semelhantes à minha história. Enfim, comecei a falar abertamente, apesar de que no começo o meu coração disparava, e isso aliviou o peso que carreguei anos e anos.
          Olhando lá atrás sinto que vivi em meio a uma batalha, pois que, no íntimo, nunca aceitei a submissão. Só me sujeitei a ela.
          A idade tão temida para todos foi o desvencilhar da minha prisão interior. Sinto muito não ter sido mais ativa, mas apenas sinto porque, retrocedendo, até hoje não consigo enxergar a possibilidade de tê-lo sido. Vida que passa...



 




Conto publicado no livro "Fato ou ficção?" - Contos selecionados
Edição Especial - Setembro de 2020

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