Marina Moreno Leite Gentile
São Paulo / SP





Roupa suja



Duas amigas idosas estão em um terraço, conversando sobre muitas coisas, relembrando o passado distante.  Um filme, muitas situações difíceis, superações, amores, desamores, constituição de família, rompimentos, nascimentos e até uma pandemia.   A mais faladeira é branquela, olhos de cor azul;  a outra, uma alegre e festeira baiana, olhos castanho-escuro.  As duas têm algo em comum,  a profissão que abraçaram no decorrer da fase mais árdua da vida.

Sobre a conversa,  há algo a explicar para que o leitor entenda.  Antigamente  máquina de lavar roupas era algo que raríssimas pessoas possuíam.  Naturalmente cada família tinha uma realidade.  Aquelas que podiam ter uma pessoa para ajudar no serviço doméstico, esta fazia de tudo. Mas em alguns casos, as patroas preferiam  deixar  as roupas a cargo de alguém especial: a lavadeira.  Da mesma forma que atualmente algumas pessoas fazem o possível para ter uma faxineira, pelo menos uma vez por semana ou quinzena, naquela época algumas senhoras faziam o possível para contratar uma lavadeira.   Já era uma super colaboração pois lavar roupas manualmente é muito difícil.  Não é para qualquer uma.

A amiga de olhos da cor azul  começou a contar sua história: - Certo dia bati palmas em um portão.  Assim que fui atendida pela dona do casarão, eu falei que morava de caseira em um terreno próximo dali  e que estava procurando trabalho.  Falei que era do interior,  relatei um pouco de minha pessoa e de como chegara até a capital.  A dona do casarão conhecia a proprietária deste terreno,  então nem pediu referência,  todavia  fez algumas perguntas, entre as quais, se desejaria lavar as roupas da família dela.   A resposta foi afirmativa.  Daí em diante  me tornei uma lavadeira profissional.  Era bom porque eu podia cuidar das crianças, sem ter que ausentar-me o dia inteiro. Fiquei  feliz, pois o marido estava doente, sem condições de trabalhar, manter as despesas.  Acertamos  que toda segunda-feira   buscaria a trouxa de roupa e devolveria  na sexta-feira.  Mas se pudesse entregar antes, melhor.  A cada entrega o pagamento era efetuado, de acordo com a quantidade das peças. 

Era bem grande o terreno onde estávamos residindo.   Havia muitas árvores, uma fonte de água (mina), natureza intocada.    Naquele espaço preparei  mais  varal,  com uns fios que tinha,  para que coubessem todas as roupas, as quais dali em diante iria lavar.   Iniciei a atividade, com muito ânimo e continuei por um longo tempo.    Assim que chegava com a trouxa,  selecionava as roupas coloridas das brancas;  separava as mais limpas das mais sujas, etc.  Tinha que ter uma organização  para aproveitar  o sabão, mas principalmente a água.   Não existia conta de água para pagar, em compensação tinha que carregar os baldes cheios e pesados, da fonte até o tanque.   Era necessário ter  boa organização para o  serviço ser  bem executado.  
  
Algumas peças,  tais como jeans, toalhas de mesa, meias, necessitavam ficar de molho.  As mãos ficavam calejadas;  às vezes  os dedos ficavam avermelhados,  feriam, de tanto esfregar.   Dependendo da roupa, recorria a uma escova  no “esfrega esfrega”,  mas com cautela  para não danificar  o  tecido.   Quando caia um botão, ou percebesse a necessidade de alguma costura simples, eu  mesma  consertava.  Desde criança aprendi a realizar pequenas costuras, lá no sítio dos meus pais.

No inverno era uma situação complicada, devido a dificuldade de secagem das roupas.  Então as peças eram espalhadas internamente,  na pequena casa,  onde fosse possível.   A energia elétrica era emprestada de uma vizinha,  que ficava cerca de 100 metros de distância.   A divisão da cota de pagamento muitas vezes foi injusta, mas como não existia outra opção,  tinha que aceitar o valor recebido e ponto final.   Quando recebia o valor a pagar,  este  compromisso era a prioridade.

Na vinda até em casa, as roupas sujas eram  envolvidas  por um pano grande, formando uma trouxa.  Dava um nó e depois outro,  de forma  que um vão  encaixasse  em um dos braços para carregá-la.  Depois de limpas, no momento de entregar as roupas era outra situação.  Era necessário fazer a entrega em duas vezes.  Primeiro levava as camisas e calças organizadas em cabides e transportadas de uma maneira  que não amassasse. As roupas que podiam ser dobradas formavam  um volume  que  era  embrulhado  em um pano  e  carregado  sobre  os dois braços estendidos,  como se fosse uma bandeja,  com as duas mãos voltadas para cima.  A dor no braço era inevitável, devido ao peso. Contavam-se  as roupas,  conferia-se tudo  e  o pagamento era efetuado. Era mais ou menos assim a rotina, amiga!  

Assim criei os filhos, comprei uma casa, sou independente financeiramente, dando exemplo para quem conhece minha história.  Às vezes sou exagerada no rigor, mas tenho razão em muita coisa. Embora não necessite, continuo  fazendo economia  e reciclando água. Não é mais questão de necessidade, mas de constante consciência.   A natureza agradece.

As duas amigas riam, suspiravam e eu escutando esta história atentamente,  no desejo de narrar este exemplo, que representa tantas mulheres em nosso Brasil.  Cada uma com sua profissão, sua realidade.  De repente a outra amiga idosa  disparou a falar.  Agora era a vez de Dúnia relatar parte de suas experiências de vida:
 - Amiga, por falar em lavadeira, lá na minha cidade, interior da Bahia, as roupas são lavadas em rios ou em lagoas.  Fui ensinada que é melhor iniciar pelas roupas mais sujas,  pois são ensaboadas e estendidas sobre algum local, para receber um pouco de sol e facilitar a limpeza. Às vezes as colocam em pedras, até em areia, para quarar.  Depois é a vez das roupas mais fáceis.  Assim que terminam de lavar, enxaguar,  são colocadas para  secar.  Quando tem uma cerca por perto acaba se tornando um varal, mas podem ser secas em arbusto ou em outra improvisação.  Quando a lavadeira termina de estender  estas roupas mais fáceis,  volta a esfregar aquelas mais sujas, as quais colocara para quarar. Durante este tempo, boa parte das  roupas secam, diminuindo o  peso da trouxa na cabeça. As lavadeiras mais tradicionais e antigas ainda mantém o costume de colocar a trouxa assim.

Lá, muitas das lavadeiras tem dores nas costas, pela posição do corpo, curvadas  por muito tempo. Como não tem tanque nestes lugares,  é necessário se abaixar, ajoelhar, para ficar no nível do rio ou lagoa.  Cada uma a seu modo, dependendo do lugar. As mãos de todas elas tem calosidade, de tanto esfregar  e torcer manualmente.  Algumas dependem exclusivamente deste serviço, pois sozinhas criam os filhos ou porque a renda do marido é insuficiente para o básico.   Cada uma com sua história e necessidade.

- Sabe amiga, Muitas meninas conviveram com suas avós e mães, executando esta atividade. Algumas delas tiveram a chance de mudar a trajetória, mas a maioria não.  Eu vivo aqui na capital, e apesar das dificuldades, é mais vantajoso na questão da remuneração, por uma questão de poder escolher com quem trabalhar. Lá, tem lugares que não existe outra opção, então a remuneração é baixa demais. Trabalha-se muito para ganhar pouco. Quando a pessoa tem família, compromissos e responsabilidade, acaba aceitando qualquer coisa por qualquer dinheiro. É triste. A consequência  volta para a sociedade, claro. Felizmente eu e você tivemos filhos que progrediram, foram adiante, mas muitos não conseguem mudar, se tornam estatísticas.  As duas balançaram a cabeça, suspiraram, com reprovação do sistema.

Passaram-se muitos anos, filhos bem criados e trabalho encerrado.  Agora as duas têm máquinas de lavar, água encanada e luz elétrica.  Para ambas, nesta fase da vida, é como se morassem num castelo.    

Atualmente muitas pessoas têm  máquina de lavar, sendo desnecessário contratar estas lindas profissionais, mas ainda existem lavadeiras Brasil afora.  Merecem todo respeito.   Muitos trabalhadores de hoje são como aquelas lavadeiras, relatadas por Dúnia, ou seja, não podem escolher, não têm outra opção. E por falar em operários,  continuam sendo expostos a situações esquisitas. São invisíveis para algumas coisas e visíveis para determinadas estatísticas. Tem coisas que parecem ser ficção, mas é fato; e  vice-versa. Tempos difíceis!

 



 




Conto publicado no livro "Fato ou ficção?" - Contos selecionados
Edição Especial - Setembro de 2020

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