Jonatas Rubens Tavares
São Francisco do Sul / SC

 

 

O pio do jaó



         - Criminoso tem salvação? – perguntara padre Belmiro certa vez durante a missa – tem lugar na eternidade pra bandido?
         Quando Zé Raimundo, cangaceiro de profissão, deu de cara com a morte, foi um encontro daqueles. Quem diria que logo um homem que tanto matou fosse se despedir da vida em uma circunstância misteriosa daquelas? E esse foi justamente o caso em que a pergunta do religioso veio a calhar.
         - Vocês não vão acreditar no que se deu com aquele cabra, meu povo! – berrava esbaforido o pequeno Pétito assim que o episódio se sucedeu. O menino anunciava as novas na pracinha ao lado da igreja, a multidão de Vila Velha se ajuntando, se acotovelando em volta.
         - Eu explorava a caatinga, olhava aqui, olhava lá, quando vi o bando do Zé Raimundo de passagem lá pelas bandas do açude seco – desatou a narrar Pétito - me escondi rapidinho numa moita. De repente ouvi um berreiro infernal e muitos tiros. Os foragidos tinham topado com uma tropa volante!
         Pegos em emboscada, estavam, Zé Raimundo e seu grupo, trocando tiros com as forças da lei em plena caatinga quando o líder da bandidada foi alvejado em cheio no peito. Tombou de lado, os tiros ribombando em volta, soando distantes; arrastou-se para o meio da seca vegetação rasteira mais próxima. O criminoso ia se esvaindo em sangue ali mesmo, escondido, que aquela era, para ele, uma morte vergonhosa demais para ser dividida com mais alguém.
         - E eu encolhido, fingindo que nem estava ali – acrescentou o jovem narrador.
         - Chegou a tua hora, Zé Raimundo – anunciou a morte negra, pavorosa, surgida do nada, agachando-se junto ao cangaceiro.
         - Eu sei, eu sei... – explicou o fora da lei irritado, a blusa empapada de sangue no peito, as moscas zunindo em volta buscando pouso – Mas e eu lá mereço cortejo, ainda mais da morte em pessoa?
          - Largue mão de se fazer de humilde – a morte sorria zombeteira, dando tapinhas leves no rosto do caído – durante praticamente toda a sua vida estivemos lado a lado.          Caminhamos juntos dia após dia. Você matava, eu transportava, você matava, eu transportava.
         -Eu despachei foi é muita gente desse mundo mesmo – lembrou Zé Raimundo tossindo – Já que eu te servi, já que te alimentei tanto... Trate de me fazer um favor...
         -O quê? – perguntou sussurrante a dona cujo rosto ficava escondido sob o capuz.
         -Me deixa confessar com um padre antes de partir... Preciso de ser ouvido pelo padre Belmiro.
         -Só em sonho, cabra, que eu não te devo é nada não! Negócios à parte! – indelicada, garrou corrente no tornozelo de Zé Raimundo, disposta a puxá-lo para o submundo – Tá arrependido, é? – gargalhou - Teve a vida toda pra isso, coisa ruim!
         -Então me deixe ouvir o pio daquele jaó – apontou o pássaro pousado, sereno, no galho baixo de uma barriguda – Eu gosto do canto do bicho... Se ouvir, parto sossegado.
         -É um pedido razoável – a morte ponderou – e você me enviou de fato foi é muita gente, despachou multidões – a do manto sentou-se no chão ao lado do cangaceiro – aproveita a tua despedida desse mundo – e tendo tirado de debaixo do manto uma lixa de unha, a dona morte tratou de aproveitar o tempo livre para aparar as garras.
         -Obrigado – agradeceu Zé Raimundo enquanto cuspia sangue.
         O céu azul limpo lá em cima, o sol a pino, uma brisa leve e refrescante soprando, uma lágrima percorrendo, lenta, o rosto encardido e sofrido do cangaceiro. Então o tempo para o homem pareceu parar. Lá em cima, onde dois galhos da barriguda se encontravam, se cruzavam, sobrepondo-se um ao outro, surgia aos olhos do moribundo um símbolo familiar, arrancando-lhe dos lábios um sorriso tosco e esperançoso.
Súbito, o pio do jaó se fez ouvir.
         - Está feito, meu velho – disse a morte, levantando-se e batendo o poeirão do manto. Foi então que percebeu: estava só com sua corrente. De Zé Raimundo só restavam as roupas.
         - O rato me enganou! – grunhiu a sombria socando o ar.
E assim Pétito findava o relato. O povo de Vila Velha, na expectativa de que a história prosseguisse, não dava um pio.
         - E o que foi que houve? – perguntaram os vila velhenses ante o silêncio do garoto.
         - Não sei – Pétito deu de ombros – o cabra se escafedeu!
         - Zé Raimundo foi salvo – acudiu padre Belmiro, que compunha o grupo de ouvintes – Deus o levou.
          -Um bandido daquele? – alguns protestaram.
          - No momento derradeiro ele se arrependeu – concluiu o pároco emocionado – de coração. Não se lembram do sermão no último domingo, sobre Jesus e o ladrão arrependido na cruz? – e recitou – “Em verdade te digo hoje: estarás comigo no reino dos céus”.
         Daquele dia em diante sempre que o povo de Vila Velha ouve o pio do jaó, lembra-se, arrepiado, da fé de Zé Raimundo, o cangaceiro arrebatado. E dizem que sempre que tem de pisar na pequena cidade, a morte o faz irritada, lembrando-se daquele que a enganara.

 

 


 




Conto publicado no livro "Contos de Grandes Autores"
Edição Especial - Maio de 2021

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