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Maria Ioneida de Lima Braga
Capanema / PA

A flor híbrida


               

Eugenia aos cinco anos de idade perdeu a mãe num acidente de carro e desde então foi morar com o pai, a madrasta Juliana e um casal de irmãos.  A madrasta, com um gênio de cão, foi contrária à sua vinda para a família e travou uma acirrada batalha tentando persuadir o pai de Eugenia a mandá-la para um orfanato e como não conseguiu tornou-lhe a vida um inferno. Eugenia está hoje com dezoito anos, mas ainda sofre as represálias, pois a madrasta nunca engoliu a afronta.
A moça sozinha em casa levanta-se da cama e atira a um canto o livro que tentou ler, mas que não passou da primeira página. Vai à janela, mas não se interessa pela vida que se manifesta lá fora numa tarde clara e ventilada. Sua alma está escura. Vaga o pensamento... “Ainda bem que não conseguiu... mas o que é dela está guardado” Esboça um ligeiro sorriso, recheado de ódio. Chega a voz da madrasta “precisamos providenciar um quarto para esta menina”, o que nunca aconteceu. Tratou de mandá-la para o quarto da empregada com uma justificativa ridícula “esta menina pode ter pesadelos” – “Esta menina” era assim que sempre se referia a ela. A fisionomia da moça crispou-se com a débil luz de um carro que passava lá embaixo. Quis refazer-se da reflexão, mas às vezes uma pessoa se abandona de tal forma ao sofrimento, com tanta complacência que é quase impossível poder sair de lá. E como numa caixinha preciosa guardava todas as lembranças da infância e mais uma vez a voz da madrasta chega de quando a trancava no quarto “Vai contar idiota? Perde seu tempo. Ninguém viu. Sem testemunha querida, quem vai acreditar? ”. Todavia, Eugenia nunca transparecia ao pai, aos amigos deste ou a quem quer que seja, qualquer insatisfação ou aversão à madrasta, mas na medida do possível, esquivava-se das reuniões de amigos ou das festas em família. 
Juliana foi de origem pobre, mas como nunca aceitou tal condição; fez o diabo até conseguir mudar-se para a casa de uma parenta na capital e nem se importou em renegar definitivamente as origens. Num golpe do acaso a sorte sorriu-lhe e conheceu o empresário pai de Eugênia. Ele bem mais velho teve uma paixão dessas arrebatadoras e tratou logo do casamento. Juliana era assim como se diz “ajeitadinha”, mas com o dinheiro do marido tratou de melhorar, de modos que se tornou uma exuberante mulher, atiçando ainda mais seu caráter arrogante e prepotente. O jeito compenetrado de Eugenia a irritava profundamente, mas na presença do marido e dos amigos dissimulava seu ódio e intolerância à enteada. Todavia, ao ficarem a sós mostrava as garras com truques e golpes baixos, para mostrar ser a dona da situação. Naquela tarde entrou em casa apressada e viera só para pegar uns pertences pessoais. O marido e o casal de filhos viajaram pela manhã e já a aguardavam na casa de praia. Iria juntar-se a eles para o final de semana. Ficara para um chá beneficente que não quis perder por nada. Fazia parte de sua representação de boa senhora. Entrou em seu quarto, pegou o que precisava e desceu quase correndo. Parou na sala de jantar e sentiu fome. Ainda bem que na fruteira em cima da mesa restava uma maçã. “Beleza”. Pegou - a e saiu abocanhando voraz. Parou à porta do quarto da enteada “Avisaria que estava indo?”, hesitou e resmungou com a boca cheia “Idiota, faz questão de ficar fora dos programas da família, dane-se. Não sabe o bem que nos faz estúpida”. Riu satisfeita consultando o relógio, engoliu o bocado de maçã e saiu sem ser vista. Entrou no carro e enquanto atravessava o jardim contemplava as flores através do vidro escuro. Num olhar abraçou as orquídeas. Deteve-se em suas lindas e prediletas, espécie híbrida.
A lembrança de quando o marido a presenteou chegou nítida e isso encheu-lhe a expressão de orgulho e o rosto iluminou-se, mas de repente sentiu uma ligeira vertigem, os olhos embaçaram, então empalideceu. Baixou rápido o vidro e tomada por uma estranha asfixia atirou nas flores o que restava da maçã. Meneou a cabeça em direção a casa, a janela da enteada permanecia fechada. Rápido levantou o vidro, encolheu os ombros e destilou mais insulto “Infeliz. Vai morrer só miserável! ” E ganhou a estrada. O tempo como a conspirar num entendimento sutil mudara de repente, e nuvens escuras se formavam anunciando chuva. Eugenia, que espreitava, logo que a viu atravessar o portão foi à cozinha providenciar o que comer. Assim que acabou a refeição a chuva despencou e ela aproveitou para enfiar-se na cama adormecendo quase que de imediato. A meia-noite é acordada pelo barulho do telefone tocando.  Dirige-se à sala para atender... Alô....
- Tão jovem!  – Sopra baixinho repondo o fone no gancho.
Sentou-se no sofá da sala, encolheu as pernas e abraçou os joelhos, repousando a cabeça no colo imaginário. Ficou ali enroscada a embalar-se enquanto um misto de sentimentos vinha em profusão repassando sua vida naquela casa. Aquela posição sempre foi sua válvula de escape nas horas difíceis.                             
No dia seguinte Eugenia mantinha total equilíbrio ante ao atordoamento geral. Dona da situação amparava o pai que circulava a lamuriar-se desolado “Pobre querida. Como isso foi acontecer? Dirigia tão bem! ”
Finalmente sai o cortejo levando o corpo da madrasta. Eugenia vai ali, o rosto lívido a nome de nada, presa entre estranhos. Amarfanha o lenço sem utilidade, pois o ressentimento impedia as lágrimas. Ao atravessar o jardim detém-se na espécie híbrida das orquídeas e colhe-as com mãos trêmulas. Seu olhar desvia-se e sua fisionomia contrai-se. Vê o resto de maçã largada lá.  Retoma a marcha. Hirta em frente ao caixão aperta a cicatriz numa das mãos, enquanto chega-lhe o pesadelo da infância “não toque nelas menina idiota. Queimo a mão hein. ”. Os olhos estreitam-se, a boca move-se e sopra inaudível “Todas suas” E atira as flores e retira-se serena como sempre foi.
À meia-noite uma sombra esgueira-se no jardim. Enquanto enterra certo resto de maçã a filmagem do inconsciente vislumbra seu arrebatado triunfo  “Quem viu”?

 
Conto publicado no "Histórias (incríveis) da meia-noite" - dezembro de 2016