Ediloy A. C. Ferraro
São Paulo / SP

 

Fôlego de gato

 

               

Na minha mente as últimas palavras a me martelarem o cérebro, houve um acidente, venha logo... As frases lacônicas davam-me vertigens e um turbilhão de possibilidades terríveis. Meu único filho. Divorciado de sua mãe, parece que a responsabilidade paterna se sobrecarrega,  não importando as razões do rompimento, sempre o elo do relacionamento perene a nos lembrar que há ex esposa, sim, ex filho, jamais !

Deixei o telefone fora do gancho, atônito. Não me recordo se avisei alguém, se o fiz foi em frases desconexas e curtas... A fala de minha ex cunhada, sincopada e trágica, de um telefone público, alertava-me da urgência, sem entrar em detalhes. Momentos em que a mente, febricitante e aflita, vai aos precipícios, imaginando o pior.

Corri para a rua e entrei no táxi, falei ou gritei, o importante é que o motorista, solidário e compreensivo, colocou sinal de alerta e arrancou cortando caminhos e negligenciando em faróis amarelos, uma solidariedade anônima daquele taxista a compreender a aflição de um pai angustiado, chegamos...

Os parentes maternos, os mais próximos, todos ali reunidos, silêncio, sinal mais aterrador e mudo que dispensava comentários, apavorei-me... Rompi a sala de emergências e o encontrava, rosto hematoso, disforme, respirando através de uma máscara de oxigênio, segura pelas mãos da avó materna dele, com formação em atendente de enfermagem. Embora assustado, estava consciente, inclusive pedindo-me calma, algo inusitado naquela ocasião. Seria cômico se não fosse sério, de cara inchada e tranquilo ele dizia "que não foi nada..."  Lembro que as lágrimas sopitavam pelo meu rosto, o medo e a insegurança estampavam meus temores.

Cheguei junto à porta do Pronto-Socorro, avistei a mãe dele cabisbaixa, dizendo-me, em monossílabos vagos e breves, da queda, estúpida e imensa, gelei... Ela mãe de um bebê de dias, do outro relacionamento. Parecia absorta, alheia e pasma, como se buscando entreter-se diante a situação, trocando as fraldas da criança. Mas o pouco que disse dava a dimensão do acidente, alegava que ele poderia estar "quebrado" por dentro. Sentimos uma muda solidariedade naquele transe, esquecidos de eventuais diferenças, o acidente nos era comum, ambos impotentes e assustados, com receio dos resultados dos exames clínicos.

Passados os instantes iniciais, dando me conta do acontecido, longe de afastar as preocupações, pelo contrário, nos afligindo mais. A altura do tombo dava-me a extensão de minha apreensão, desabou de um prédio equivalente a três andares... Passo em falso ao soltar pipa, de cima de uma caixa d’água ao terreno vizinho,  imaginei o corpo solto no espaço a chocar-se no chão...

Hoje, vendo ambulâncias com suas sirenes, apresso-me a dar passagem, pois sei o quanto de importante pode expressar aquela pressa. Foi transferido de um hospital a outro, direto para a unidade de terapia intensiva.

A vigília na porta da UTI, com o diagnóstico enfático do médico: " as próximas 24 horas serão decisivas. Se não ocorrer hemorragias internas terá sido apenas um susto..." Resumia, assim, as duas possibilidades, a fatalidade ou a cura.

Aconselhou-nos, a avó dele e a mim, que fôssemos embora, descansássemos, nada haveria a ser feito, apenas esperar. Lembrança de uma noite mal dormida, sono leve e sobressaltado... Pela manhã, semi-acordado por uma ligação, fui ríspido com a minha companheira, que se encontrava no interior em viagem, entre aliviado por não ser do hospital e nervoso pela tensão de horas mal dormidas. Nestes momentos ter que ter a paciência para narrar os fatos e apaziguar a ansiedade alheia é exigir demais de qualquer um com os nervos em frangalhos.

Caiu por etapas, explicou-me depois. Parou por segundos no alpendre de um dos andares antes de desabar sobre o varal do quintal vizinho... Aquele aparador de roupas teria amortecido o tombo, amenizando as consequências da queda. O amiguinho que o acompanhava teve uma crise de asma, ficou atônito, sem ar, mal conseguindo dar a notícia aos demais. A recuperação foi em cadeira de rodas, para cicatrizar a lesão na bacia, felizmente um nada diante ao tamanho do feito . Buscava as lições na escola (Colégio Boni Consilii) para não haver interrupção no ano letivo. Foram longos dias de cuidados, de tomar banhos sentado e passear em quadro rodas, assistir vídeos e de leituras para ocupar o tempo.
Tinha 10 anos de idade e um destemor preocupante...

Anos depois, na faculdade, foi de Sampa à Franca, o trajeto de bicicleta, 35 horas de pedaladas...  ficou conhecido como  CAIO CALÓI. Informou-me que, quando o cansaço parecia impossível, parava algumas horas antes de prosseguir em seu destino. Participou e colecionou medalhas em maratonas de corridas a pé, além de praticar judô e capoeira.

Nas férias, já professor de história, foi de bicicleta até o Uruguai, intermeando espaços de ônibus, chegando até Buenos Aires, Argentina. Depois, em 2016, chegou ao Chile, intercalando paradas, pilotando sua eterna companheira. Pelo desenrolar das viagens este é um relato inacabado...

A infância não prevê riscos, a juventude é ousada.

(O nome do "ousado" é  Caio Cândido Ferraro)

 

 

 
 
Publicado no Livro "O Jogo da Vida" - Edição 2018 - Outubro de 2018