Mayara Costa Lima
Pacatuba / CE

 

Jogo particular

 

               

Nasci na rua como qualquer um poderia nascer, mas não era qualquer outro, era eu.  Que importa? Muitos outros me precederam. Muitas vezes estávamos todos ali, em uma esquina, debaixo de um alpendre. Minha mãe era uma cadela sozinha no mundo, pai um ser não mencionado, só vivíamos o feijão de todo dia, assim, ali, do modo como qualquer um da mesma espécie poderia viver.
 Que mundo era aquele? Ou melhor: Que jogo será esse? Pensar sobre algo é sofrer sua existência, então o melhor é ocupar-se com coisas, tentar simplesmente silenciar as perguntas e continuar apenas como um jogador. Mendigo um prato de comida, quem quer que esteja disposto a dar não será rejeitado, a origem da comida não importa, nem o que é colocado no prato ou na sacola, se puder ser engolida é o suficiente.
Os parentes sempre foram muitos, mas é como se não existisse ninguém, cada um busca o que lhe é oferecido, na condição de ser que não somos nosso valor não é pensado, não somos aproveitáveis para quase todos. Nunca percorri grandes distâncias, nunca quis andar em círculos, mas é assim que é, quase todos andam em círculos nesse jogo, círculo dos pais, dos amigos, da comunidade, tudo gira, tudo é círculo.
Todos estão cientes da minha origem, conhecem a minha não privacidade, sabem o que se passa debaixo do alpendre ou naquela esquina, olham o que eu sofro, mas não sentem minha desgraça, minha nudez não os ofende, o odor das minhas feridas não os afeta, no máximo os mais sensíveis me expulsam de suas calçadas quando a tarde chega, outros me ofertam sobras para aliviar a própria consciência, mas para a maioria a minha presença é invisível. Minha existência é importante para mim mesmo e isso quase basta.
Sou resultado das escolhas de outros, sou resultado das minhas escolhas e sou resultado da dor que há no mundo, mas que em mim é tão particular como o arranjo das cores no meu corpo, minha linguagem não é ouvida e por isso dizem que não falo, não posso mostrar nada além do que já está posto, o que eles vêem? Não importa. Do lugar de onde vim muitos outros virão e como apenas um cão que passa por você, em uma esquina qualquer, ali estará resumida toda a minha existência para você, em somente ter passado.
 Qualquer dia desses, você é que passará por mim e como quem não vê nada, me desprezará, mas eu estarei naquela esquina mais cedo ou mais tarde, caído, inerte como qualquer outro, acometido pela tragédia da velocidade do mundo, simplesmente mais um carro terá passado.

 

 
 
Publicado no Livro "O Jogo da Vida" - Edição 2018 - Outubro de 2018