Rozelene Furtado de Lima
Teresópolis / RJ

 

A vida não é uma competição

 

               

         

             A vida não é uma competição. Nem tente vencer a vida. Não há campos de batalha. O que há é pradaria para descansar. Não coloque obstáculos a minha frente. Não invente inimigos para mim, eu não os reconhecerei, nem os idolatrarei. Não posso olhar uma rosa como se ela já estivesse tesourada por formigas. Não alimente as feras que vão te devorar. Para que perder tempo com o inútil e o descartável? Ou passar noites em claro para analisar o que não aconteceu e colocar às costas o peso gelatinoso e morto da culpa? A vida está sempre ao nosso favor, é lamentável que nós somos treinados para o medo e a ver coisas infelizes. Quero quebrar correntes, a liberdade de pensamento é tudo.  Mentes vazias são como gavetas pode-se colocar qualquer coisa sem seleção, sem ordem e sem discernimento. A vida é valiosa!
             Pensando assim caminhava Melina, sentindo os últimos raios de sol que pintavam o horizonte de rosa mesclado e azul como se fosse feito com a técnica batique. Espetacularmente lindo! Envolvida com a beleza do crepúsculo com os olhos fixos no céu, não viu um bueiro grande sem tampa, provavelmente roubada por algum vândalo, e caiu com os dois pés. Não passava ninguém naquele instante: - Aaaaaaaaiiiiiiii, socooooooooooooorro. Gritava ela, mas ninguém ouviu. Caiu no vácuo feio, fundo, escuro. Encostou-se na parede úmida. Nunca torceu tanto para que uma pessoa caísse num bueiro, para gritarem juntos até alguém ouvir e os tirassem de lá. 
             No momento que ia caindo tentou agarrar na borda, mas não deu, quando levantou os braços perdeu a mochila pequena que carregava. Devia ter caído também e o celular estava na parte externa da mochila. Ainda via um fiapinho de claridade quando olhava para cima, era da iluminação pública.
          E agora Melina?  Chorar e gritar para quê? O desespero vai ser ruim para mim, pensava ela. Nesse momento escutou latidos insistentes. Depois cessaram. Não conseguia precisar quanto tempo estava lá. O frio aumentava, as pernas doíam, sentar onde?
           Voltou a ouvir os latidos, mas agora vinham bem de cima de onde estava, como se o cachorro estivesse latindo com ela. De repente escutou um ranger de correntes, vindo do lado esquerdo dentro daquele túnel onde estava mergulhada. Estremeceu, trocou as forças e a coragem por um medo enorme. O cachorro voltou a latir e o barulho das correntes aumentava aproximando cada vez mais. Lembrou que tinha lido que de cinco em cinco dias passava uma máquina que arrastava tudo que estivesse na parte do esgoto e ia triturando os resíduos encontrados. A máquina funcionava por controle remoto. Não tinha para onde fugir, correr ou ser socorrida. O som vinha chegando cada vez mais próximo. Melina resolveu desligar seus controles pessoais e voltou a um tempo bom da infância. Mergulhou profundo no passado como se estivesse lá, naquele tempo.
         Quando tinha mais ou menos 7 anos, brincava com Filé seu cãozinho. Jogavam bola, e a bola caiu num poço que tinha no pomar. Ela sabia que era  proibido aproximar-se daquele poço, embora estivesse sempre tampado.  Naquele dia o jardineiro estava usando a água do poço, e fez uma parada para o almoço. E foi nessa hora que a bola caiu lá. Filé correndo pulou no poço e infelizmente não se salvou. E lembrava como sofreu. Aquele cachorrinho ela tinha encontrado na rua, abandonado, esquelético, machucado e mancando de uma perna e quase sem pelos. Ele seguiu-a. Foi difícil convencer seus pais que queria ficar com ele. Levaram ao veterinário e foi demorada a recuperação do cãozinho. Ficou muito fofo! Adorava comer carne e por isso recebeu o nome de Filé. Quando morreu afogado no poço já estava na casa há três anos.
         Os latidos fortes tiraram Melina do seu passado. E uma voz num megafone expandiu a lacuna entre a vida e a morte: - Melina você está aí? Tenha calma, vamos descer e tirá-la daí.
         O som da máquina parou, os latidos pararam e ela só recobrou os sentidos quando acordou numa cama de hospital.
         Melina era professora de Física numa universidade. Jovem, bonita, solteira. Vivia com os pais.
        Como foi que vocês me acharam? Perguntou curiosa a jovem. 
- Um cachorro levou até ao nosso portão sua mochila. Seu pai quando chegou encontrou o cão sentado ao lado da mochila. Ele pegou a mochila com seus pertences e não conseguíamos entender aquela situação. Tarde da noite, você não chegava, então pedimos ajuda a polícia.
         No dia seguinte à tarde não tínhamos a menor noção onde procurar você. Que angústia!  Seu pai reconheceu que o mesmo cachorro que estava no portão com a sua mochila estava latindo à beira de um bueiro destampado. O resto da história é fácil imaginar...
        Mãe, onde está o cachorro que me salvou?  A mãe respondeu: – Sumiu, mas o seu pai fotografou o bichinho à beira do bueiro, e mostrou para Melina a foto no celular.  Melina começou a chorar emocionada e comentou: - Este é o Filé! Olha a coleira e a plaquinha com o nome e o endereço que colocamos no pescoço do Filé.

 

 
 
Publicado no Livro "O Jogo da Vida" - Edição 2018 - Outubro de 2018