Rhadra Calache
Rio de Janeiro / RJ

 

Alforria

 

       

- Díni, duas margaritas pra mesa 7.
- Demorô! – disse a moça do lado de lá do balcão do pub. “E aí, Marcelo, ela curtiu?”
- Ela achou bonita, mas disse que moto é uma parada muito perigosa, saca? De fato é, mas eu curto pra caramba... Vamos ver, vou dar umas voltas com ela, tranquilinho. Onde tiver jeito, dou uma esticadinha pra sentir a liberdade, o vento... de repente ela gosta. O que você acha?
- Não faço ideia... mas prometo que fico na torcida!
- Boa noite – disse um homem desconhecido.
- Buenas! Tudo bom? O que vai querer?
- Quero que você realize um desejo meu.
Marcelo arregalou os olhos e começou a se exaltar quase instantaneamente: “O que é isso, cara? Chega falando com a moça desse jeito, sem o menor pudor?! Qual é a tua?”
- Relaxa, Marcelo, você entendeu mal. Tá tudo bem, brigada.
- Eu ouvi perfeitamente, Díni, esse cara não pode falar assim com você!
- Calma, meu amigo! - sorriu a moça, num misto de agradecimento e diversão. E se dirigiu ao recém-chegado: “Só sirvo bebidas e uns tira-gostos. Mais do que isso não posso fazer...”
- Você precisa realizar um desejo meu!
- Cara, eu não tô mais nessa vida. Desculpa aí, mas só posso te saciar a sede e a fome. E olhe lá...
Marcelo assistia ainda mais espantado e sem dar um pio, embora mantivesse os olhos arregalados. Nunca imaginou esse “passado escuso” da bartender.
- Sem essa! Meu desejo!
- Olha, não sei como você me reconheceu, nem como me achou aqui, mas tô te dizendo, não vai rolar. A fonte secou. Já era.
- Como assim?
- Acabou-se o que era doce. Aliás, de doce, pra mim, não tinha nada... Pode ser uma bebida em vez de um desejo? Umazinha te consigo por conta da casa, pra agradar o cliente novo, coisa e tal... Um drink maneiro que inventei! Te interessa?
- Não! Eu preciso muito desse desejo... Por favor, é um só... – de arrogante, o homem passou a arrasado, chegava a dar pena.
Marcelo olhou para o copo e fez as contas; não havia bebido mais do que de costume... não era possível estar bêbado àquele ponto... Por mais absurdo que fosse o papo, preferiu ver como ia acabar, ainda na esperança de entender algo...
- Cara, é como eu disse, não tô mais nessa vida. Pedi pra morrer. Tô aqui felizona agora, trabalhando como muitos seres humanos fazem! Tudo bem que contribuo pra que a galera encha a cara, mas eu dou uns conselhos, digo pra pegar leve, essa coisa toda... não quero me ferrar de novo. Foi o emprego que consegui... a vida não tá fácil pra ninguém...
- Você tinha que largar justo agora que eu mais preciso? E que história é essa de querer morrer?
- Ih, é longa... Eu cumpri meu tempo de escravidão. Foi isso. Aprendi a prestar um bom serviço, aprendi a lição. Quando a gente consegue, cara, é a glória! Alforria! Você não faz ideia... Foram milênios, éons, eras pagando pelos erros que cometi, pelos atalhos que resolvi pegar em vez de trilhar o caminho direito, entende? Eu consegui! Foi quando pude pedir pela morte. E aqui estou. Sintetizei paca, mas é isso aí. Tô livre! Minha vida agora é minha, posso fazer o que eu quiser, o que é a minha vontade, o meu desejo... mas como humana, sem poderes.
- Se você está livre, por que escolheu morrer? Não faz sentido... – a moça havia falado com tanto sentimento, que o homem esqueceu do desejo por alguns instantes.
Marcelo não ousava dizer uma só palavra, já nem lembrava de si mesmo a essa altura.
- Como não?! Faz todo o sentido! Pensa só: ver todo mundo nascendo e morrendo, árvores seculares nascendo e morrendo, estrelas nascendo e morrendo, galáxias nascendo e morrendo, universos inteiros nascendo e morrendo... e você lá, vendo tudo... Chega uma hora que cansa, sabe? Morrer vira seu maior sonho...
- Se é tão simples, por que você não se mata?
Marcelo teve um lampejo de existência e quase se exaltou, mas viu a calma do homem e percebeu que não era uma grosseria, e sim uma pergunta genuína, para a qual até ele quis ouvir a resposta.
- Não posso. Já encurtei outros caminhos antes e fui escrava por um tempo quase infinito... Sei lá o que me espera se eu fizer um troço desses... Embora eu fosse imune, não sentisse dor física nem nada, o sofrimento que passei foi imenso, foi de outra ordem, não tem como explicar... Não gosto nem de pensar em voltar para a escravidão!
- E se alguém desejasse a sua morte naquele tempo? Não funcionaria? – perguntou Marcelo, saindo da mudez estupefata.
- Infelizmente não... porque eu teria que tirar minha própria vida, o que seria suicídio indireto... mas é uma questão interessante, Marcelo. Em geral nem passa pela cabeça de ninguém... As pessoas estão sempre preocupadas consigo mesmas, ligadas a seus próprios interesses, ninguém se questiona a respeito dos gênios, ninguém se importa... A verdade é que não há libertação até o fim da sentença. E a minha acabou! Vou viver mais uns poucos 50 anos e pronto!
- Ainda tem 50 anos pela frente?! Caramba, Díni, que pena...
- Imagina! 50 anos são um piscar de olhos para quem viveu por tantas e tantas eras, meu caro! Sério, tô felizona mesmo, não falei da boca pra fora! Por que você acha que vivo sorrindo, contente da vida? Porque eu vou morrer em breve! Espero por isso, literalmente, há milênios! – levantou os braços e deu uma risada animada.
- É... é justo... - o homem esboçou um sorriso triste e foi embora após agradecer à moça com um aceno de cabeça.
- Bem, Marcelo, acho que nem preciso te pedir pra não comentar essa parada com ninguém, né?
- Fala sério, quem ia acreditar?! – os dois riram juntos.
- Mas, então, termina a história da moto. Não lembro onde tínhamos parado...
- Aí, não me leva a mal, não... tô me sentindo bêbado depois desse papo... – riram novamente. “Vou nessa, Díni, te conto depois a opinião dela. Amanhã vamos dar umas voltas e vamos ver no que dá. Torce por mim! Até mais!” – acenou depois de deixar o dinheiro no balcão.
- Pô, já que não posso te conceder a vitória, só me resta torcer mesmo! – acenou de volta, sorrindo como sempre, depois se dirigiu à garçonete que passava: “Bia, as margaritas da mesa 7 estão prontas! Pode levar, toma aqui!”

 

 

 

 
 
Publicado no Livro "O Jogo da Vida" - Edição 2018 - Outubro de 2018