Maria Ioneida de Lima Braga
Capanema / PA

 

 

E os fogos silenciaram

 Trazemos aqui os oito anos de vida, em família, do menino Mazinho. Garoto esperto que nasceu numa pequena cidade do interior desse imenso Brasil, e crescia cercado do amor e proteção da mãe Matilde e de seu avô, conhecido por Seu Juca. Não conheceu o pai. Fruto de uma breve aventura da mãe com um carreteiro do Paraná. O sujeito tratou de desaparecer, assim que soube da gravidez. Mazinho alardeava a vizinhança com suas travessuras, mas era querido por todos. Foram muitas as peripécias. Uma delas foi no dia do relâmpago. As atividades na casa de farinha começaram cedo. O céu estava claro e com poucas nuvens. Mas, à tarde o tempo mudou e a chuva ameaçava arriar a qualquer momento. Só deu tempo mesmo de correrem para dentro de casa e o aguaceiro desabou. Mazinho chegou correndo e deitou-se de cara para cima numa rede que estava atada por lá. Ficou brincando com uma hélice, dessas que vem acompanhado num pirulito.
 - Mazinho vem pra dentro, olha os relâmpagos! – Alertava Matilde de vez em quando - Vindo à janela.
Ele balançava-se e ignorava qualquer ameaça que pudesse representar os gritos da mãe. De repente o relâmpago riscou o céu, que se rasgou estrondando e o raio partiu em duas a mangueira do pasto. Foi um grito só “Mazinho! ” E a correria para lá. O menino estava teso na rede e com os olhos esbugalhados. Matilde começou a gritar descontrolada..., Seu Juca não acreditou. Conhecia a fundo aquela natureza traquina. E resmungava. “É fingimento. É mais uma das suas”.
E voluntários num corre-corre a bem esfregar álcool e alho. Veio a garrafada que curou o derrame de dona Madalena, arruda e aguardente e até café forte era bom dar, sugeriu alguém. Bem, se era fingimento ou não, nunca se ficou sabendo. Importa que algum daqueles placebos surtiu efeito. E como num passe de mágica o menino levantou-se e logo quis juntar-se ao grupo que foi ao pasto averiguar os estragos deixados pelo raio na mangueira. A rotina naquela cidade simples era pautada nas conversas de terreiro. Quebrada apenas por alguma cantoria nos fins de semana, as novenas, as Festas Juninas ou aqui acolá algum parente vinha passar a semana santa. Desde muito cedo Matilde cismou que assim que o menino crescesse o entregaria para madrinha dele no Rio de janeiro. Daria a Mazinho muito mais que aquela vida do campo. Talvez nunca tenha se perdoado por ele não ter conhecido o pai. Seu Juca insistia em fazê-la desistir de tal ideia, mas eram tentativas em vão, e resignava-se. Naquela manhã, porém, apesar de Matilde estar atarefada na cozinha ele puxou mais uma vez o assunto.
 - O filho de todo mundo se ajeita por aqui mesmo. Não conheço um que tenha saído daqui e ninguém nunca morreu.
 – Poxa pai! De novo essa conversa? Acontece que ele não é qualquer um - Enquanto eu viver não vou sossegar. Quero o melhor para meu filho. Ele vai sim, doa a quem doer.
A profunda tristeza dele nunca abalou a filha. Deitou-se após o almoço num banco, no alpendre da casa para tirar um cochilo. Mazinho que perseguia um calango passou como um raio e embrenhou-se no mato despertando seu Juca que gritou:
- Que carreira é essa, Menino?
Tempos depois lá estava ele no fundo do quintal. Cavava uma cova com as mãos e já amontoara flores. Daria um enterro decente para o calango que não resistira à perseguição. Matilde aproxima-se do pai.
-Tomara já levar ele para o Rio de janeiro.
- Deixe o menino crescer. Aí ele escolhe, eu hein!
- Só tô pensando no futuro dele. Não vou deixar que cresça enterrado aqui nesse fim de mundo.
- Você sabe como é a cidade grande? Só violência e o que não presta.                
- Sei sim e tenho horror só de ouvir falar e...
Interrompeu-se. Mazinho já no alto do jambeiro desafiando o perigo.
- Não é possível! – Gritou -  Pai cê tá vendo aquilo?
 Mazinho alheio aos planos da mãe, apenas desfrutava a pureza da infância e a espontaneidade natural de toda criança. E a vida corria-lhe assim, como bicho solto...
 No fim do ano Matilde levou-o para o Rio de Janeiro, determinada em garantir o futuro que suscitava para ele.  A atmosfera natalina resplandecia por todos os cantos. As luzes e o colorido da cidade nessa época do ano e o passeio às lojas deixou-os extasiados. No inicio Mazinho não largava a mão dela e apenas explorava com os olhos o brilho dos departamentos, mas logo pegou confiança e sua natureza livre prevaleceu contagiando-se na magia dos ambientes. Lançava-se ao encanto de conhecer cada palmo daquilo tudo numa correria extasiante, sem que ninguém conseguisse detê-lo. Matilde por sua vez com um sorriso pueril deixava-se deslizar nas escadas rolantes e esquecia da vida de pobreza e dificuldades. E a meia noite a ceia de Natal foi um momento marcante, no capítulo especial, da vida daquelas existências. Mazinho no centro das atenções explodia sua humilde ingenuidade ao abrir cada um dos presentes no aconchego feliz com a nova família.... Aquele menino livre, de pés descalços, que vivia a agitar-se de rosto afogueado e colo nu, por entre o algodoal, totalmente entregue à liberdade do campo, pouco desfrutou de sua nova realidade. Ainda é até hoje assunto nas conversas de terreiro, nas noites de luar.
 Numa tarde, Osmar da Silva “Mazinho” desapareceu como por encanto, saiu para a escola e nunca mais voltou...
É meia noite. Fogos explodem de todos os cantos anunciando o Ano 2000.  Matilde e seu Juca estão à janela e aconchegam-se. Lágrimas vazias escorrem e os soluços são abafados pelo barulho dos fogos. Mais um ano... “Mazinho não foi o primeiro, nem jamais será o último na lista dos desaparecidos”. 
Os fogos lentamente silenciam...


 
 
Poema publicado no livro "Painel de Contos Premiados" - Outubro de 2017