João Paulo Hergesel
Alumínio / SP

 

 

O pisca-pisca

 

Os olhos se abriram, mas o corpo não fez movimento para se levantar. Piscou algumas vezes, fotografando psicologicamente o lugar em que estava. Percebeu, através da janela, o pisca-pisca que contornava o letreiro com o nome do hospital. Queria gritar, chamar alguém, perguntar o que fazia naquele bloco B conhecido como UTI, mas o tubo na garganta a impedia.
A memória, entretanto, funcionava a longo prazo. Ela se lembrava do avião que havia caído na Colômbia e da presidente que foi afastada do comando da República. Mas não se recordava do caminhão acelerado que a fez perder seu direito de caminhar, de gesticular, de sorrir novamente.
Ela sabia que tinha se divertido nos últimos meses. Lembrava-se de ter entrado numa disputa com os sobrinhos para fazer as garrafas de água caírem em pé. Lembrava-se de ter ficado imóvel por alguns minutos para um vídeo com a galera da faculdade. Mas não imaginava que o desafio do manequim tomaria proporções tão reais.
As imagens piscavam em sua mente, formando uma mescla de lucidez e blecaute. Ela estava no escritório, trabalhando em véspera de Natal. Ela saiu apressada para comprar o presente da mãe viúva. Ela atravessou a rua sem dar atenção à passarela. Ela não viu o caminhão se aproximando. Ela.
As enfermeiras passaram pelo corredor e notaram os olhos contemplativos. Entraram no quarto checando aparelhos, apertando botões, mexendo em braços, pernas, rosto insensíveis. “Pisque uma vez para sim, duas para não”, pedia a mulher de branco, antes de começar com as perguntas técnicas.
O olhar, no entanto, permanecia parado, observando a fachada do prédio que dobrava a esquina. Eram tão bonitas aquelas luzes natalinas: ora acesas, ora apagadas. Orquestra silenciosa de vaga-lumes artificiais. Ela, então, decidiu piscar no mesmo ritmo, aconchegar-se no bailado claro-escuro das lampadinhas.
Piscou uma. Piscou duas. Piscou três vezes. Não precisou piscar mais. Já havia aceitado o convite para cear ao lado de Jesus.

 

 
 
Poema publicado no livro "Livro de Ouro do Conto Brasileiro Contemporâneo" - Agosto de 2017