Nilva Luzia Alves de Castro
Visconde do Rio Branco / MG

 

O desengano do engano

      

           

        A primeira impressão que tive foi a de que estava no velório errado.
Cheguei, olhei o corpo nada parecido com a imagem atlética do amigo de tempos passados. Físico bem talhado! Esguio! Feições de tirar o fôlego de qualquer adolescente menos desavisada.
        Vi ali um corpo frágil. Uma  mesma boca unida vista  a alguns dias. Sim, uma amiga, mesma idade que a minha, porém destino bem diferente. Solteira, sem filhos, sem história para contar e a quem contar. Morte por suicídio que muitos céticos negam com convicção. Porém as evidências não deixam dúvidas.
        Voltando ao defunto, já conformada com o engano, fiz-me parecer conhecida. Abracei aos próximos do esquife. Ensaiei algumas lágrimas. E não é que rolaram!
        Saí a esmo pelo cemitério procurando uma desculpa por estar ali. Procuro por entre os túmulos aquele onde minha mãe se encontra sepultada. Nada de reconhecer coisa alguma.
        Finjo estar diante de uma sepultura familiar e deixo as lágrimas rolarem aos cântaros. Bem, acho que devo  fazer um teste para as próximas novelas da Globo!
Depois da encenação, procurei o caminho central rumo à saída do cemitério. Prestes a transpor o portão de saída não é que me deparei com um rosto conhecido, parente do amigo que queria velar? Era o defunto procurado.
        Homens de preto. Comportamento formal. Penso ser alguma entidade da qual meu amigo fazia parte. Fiz-me íntima. Caminhei  por entre os seus procurando uma posição de destaque. Juntos o conduzimos ao destino final.
        Após o caixão ser introduzido onde seria a morada perpétua do amigo, palmas foram ouvidas. Acompanhei.
        Observando o comportamento do coveiro, percebi em suas atitudes a frieza dos gestos repetidos. No chão, havia uma masseira pré- preparada  da qual ele com sua colher retirava, silenciosamente e aos pouco, pequenas porções, e ia jogando nas laterais da abertura da câmara mortuária. Calmamente, ia procurando entre os tijolos, aqueles de tamanho adequado à sua necessidade.         Aparava, ajustando os de tamanho indesejados. Um a um foi colocando até fechar completamente a fresta que ainda dava para ver, mesmo que de relance, a urna fria que acolhia dentro de si um corpo também frio.
        Inimaginável esse fim!  Pensar que naquele corpo agora sem vida, houve veias com sangue correndo dentro. E que esse mesmo sangue fez pulsar um coração. E que esse coração pulsou no ritmo dos sentimentos experimentados
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Poema publicado no livro "Livro de Ouro do Conto Brasileiro Contemporâneo" - Agosto de 2017