Letícia Alvarez Ucha
Porto Alegre / RS

 

Escravas da moda

      

           

Quatro horas da manhã e o sol não havia aparecido. Dolores houve passos. Suas colegas ainda dormiam no pequeno quarto destinado às costureiras. Vindas da Bolívia com a promessa de que aqui encontrariam mercado de trabalho o sonho virou pesadelo. Viviam presas na pequena peça onde eram feitas as roupas. Acordavam cedo, dormiam tarde, recebiam pouca comida e nunca salário. Era proibido saírem para rua.
Tentaram diversas vezes fugirem, mas a cada tentativa frustrada a situação delas piorava, pois mais restrições sofriam.
Um dia Veruska, dona da loja que explorava o trabalho das mulheres comentou:
-- Precisamos de uma estilista. Temos que colocar algo novo no mercado.
Irina, sua assistente disse que iria solucionar a situação. Começou a pesquisar em redes sociais, à procura de uma nova estilista. Alguém com talento, mas vulnerável. Demorou semanas e clicou na página de Yumi: adolescente esperta que criava looks inovadores, mas com poucos seguidores.  A menina postava o onde estudava e coisas comuns de sua rotina.
Logo, foi possível saber onde encontrá-la: morava em um bairro simples da capital com sua avó que pela foto demonstrava ser oriental também.
Um dia na saída do colégio, Irina, acompanhada dos seguranças Ivo e Igor seguiu a menina Yumi e ofereceu-lhe trabalho como estilista.
Sem imaginar, o risco que corria, Yumi aceitou acompanhá-los para uma entrevista. Chegando lá, foi chantageada: ela só poderia sair do local se criasse uma coleção inteira para a loja, caso contrário algo aconteceria com sua avó. Yumi teria que permanecer dias lá, para que fossem criados os modelos.
Foi levada para o quarto onde ficavam as costureiras que só falavam em  espanhol.Tentou criar um plano com as colegas de infortúnio, mas elas que já haviam tentado fugir, ficaram com medo de que algo mais grave ocorresse.
Gimena, que era bordadeira, comentou entre lágrimas e suspiros que no início cada uma recebia cem reais por mês e que depois das tentativas de fugas não receberam mais nada. Yumi não quis contrariar, mas o pequeno valor não poderia ser considerado salário e de qualquer forma, viviam como escravas sem poderem sair.
Com a voz embargada, Dolores, comentou que outra colega costureira era diabética e no início eles davam insulina a ela. Seus trabalhos eram perfeitos. Depois que conseguiram mais pessoas para confeccionarem as roupas não recebeu mais a dose e acabou falecendo.
Avó de Yumi foi chantageada e caso comunicasse à polícia o sumiço da neta, a garota seria morta. Passaram-se semanas. Uma nova estação aproximava-se e com ela a necessidade novos lançamentos.
A dona da loja/confecção precisava renovar seus catálogos. Veruska pediu que a menina criasse estampas diferentes. Então, Yume teve uma idéia: criar roupas, camisetas cuja mensagem fosse escrita em japonês e contivessem verdadeiras denúncias e pedido de ajuda. Como era sansei, neta de japoneses, aprendera o idioma.
A dona da loja gostou do projeto, afinal, muitas pessoas até tatuam palavras em japonês, por que não usá-las em estampas!? Apostou que seria um sucesso, ainda mais com a moda dos quimonos invadindo as ruas! Veruska não cogitou o significado que poderiam ter.
As peças ficaram prontas e postas à venda. Toshio, um dos revendedores da loja e conhecedor da língua, decifrou as estampas!
--- Veruska, esta menina está colocando nossos negócios em risco! Ela usou as estampas como denúncia! Temos que dar um jeito nela!
Como a qualidade dos desenhos de Yumi era alta, a mulher resolveu colocá-la de castigo, mas não livrou-se dela de vez. Agora, a moça ficava em uma peça isolada separada de tudo e de todos.  Não mantinha contato com ninguém. Gritava e ninguém a acudia.
Zuneide, a responsável pela limpeza da loja levava comida uma vez por dia. Agora, era a única que a via. Não dava uma palavra, mas sabia de tudo. O sonho dela era retornar à sua terra natal. Precisava do emprego para sustentar a si e seus dois filhos, por isso não abria a boca.
Um dia de chuva forte, a enxurrada levou sua casa e seus dois filhos. Levou isso como um castigo de Deus. Sua vida perdera o sentido. Resolveu tomar uma decisão: ligou para o disque denúncia e contou tudo que sabia.
O local passou a ser vigiado e os indícios aumentaram. Com um mandado a polícia invadiu o local e as pessoas mantidas como escravas foram libertadas e os responsáveis presos em flagrante.

 

 
 
Poema publicado no livro "Livro de Ouro do Conto Brasileiro Contemporâneo" - Agosto de 2017