Romilton Batista de Oliveira
Itabuna / BA

 

 

As ciladas do imaginário

 

 

O imaginário faz parte de nosso cotidiano, de nossa contínua formação mnemônica. Somos indivíduos interpelados por essa potência exploradora de nosso pensamento. Nosso interior pensante ou nosso diálogo monológico está em constante efervescência, numa velocidade ininterruptamente avassaladora. Nosso pensamento é dirigido por uma corrente imaginária que ronda nosso ser, principalmente quando nosso corpo entra em repouso, em descanso natural, para restabelecer as forças desgastadas durante o dia. No entanto, é nesse “descanso noturno” que um “turbilhão de ideias” visita nosso mundo interior, perturbando o nosso dito “bem-estar” ou equilíbrio humano. Um turbilhão de discursos surge como “fantasmas” em delírio, perdidos e confusos, tentando se arrumar, exatamente, no momento em que o corpo precisa estabelecer consigo mesmo um esvaziamento do tempo explorador e sugador de sua indominável formação ideológico-discursiva.
Somos visitados por esses inquietos fantasmas que precisam ser alimentados ou afastados de nosso intelecto poder humano de domínio próprio, domínio este que pode ser ameaçado por eles, mexendo em estruturas adormecidas ou em imagens-lembranças que nossa mente (memória) detecta durante o todo o dia. Esses “fantasmas”, “morcegos que precisam ser alimentados por “sangue discursivo” podem ser “bons parceiros do bem” que estão ali para ajudar o corpo a pensar melhor, percebendo algumas falhas semânticas que ocorreram nos vários discursos que se apresentaram durante o dia daquele determinado falante. Esses “morcegos” trazem consigo uma potencialidade fantasmática e imagética necessária para a formação de nossas ideias. Porém, quando estão em desequilíbrio, podem causar sérios danos no indivíduo que dele fiz uso, e que, obrigatoriamente, deve fazê-lo. Esses fantasmas, quando dissociados de um estado de equilíbrio discursivo, podem causar sérios danos no discurso do sujeito, levando-o a imaginar de forma, errônea e incoerente, o pensamento que se instala em seu corpo.
O corpo, por sua vez, torna-se “presa” dessas estruturas, e não encontra o descanso almejado. Inquieto, levanta-se, e em movimento de desordem, produz discursos que já adentraram no corpo, fazendo parte integrante de si. Inicia-se, então, a formação de pensamentos cruzados por imagens-lembranças, transformadas em linguagem que apodera e contamina todo o corpo do sujeito tocado por esses fantasmas, desordenadamente. No entanto, o corpo do sujeito, lugar de conflitos, harmonias, debates, encontros e desencontros, pode entrar na ordem ou desordem do discurso, mas aceitando apenas partes de alguns fantasmas que serão úteis na construção coerente do pensamento o do ensaio dialógico que tem o sujeito em seu mundo interior com esses “fantasmas” que surgem, na maioria das vezes, à noite, quando os corpos procuram repousar e pousar, descansar e relaxar, divagar e distanciar de qualquer sintoma ou manifestação discursiva que venha do exterior ou mundo pragmático vivido pelo sujeito durante o dia, ou mesmo, durante alguns ou vários dias, meses ou anos.
Essas “imagens-fantasmas”, ou simplesmente, imaginário humano, são úteis e necessários à vida, à formação de nossos discursos e de nossas ideias. Porém, é preciso ter uma capacidade de seleção que só o sujeito, de acordo com a sua experiência de vida e de leitura, habilmente, separará o “joio” do “trigo”. Os fantasmas ou mundo imaginário ou imaginário fictício ou ainda imaginário individual-coletivo, faz parte da formação da memória discursiva. Somos alimentados, ininterruptamente, por eles quando abrimos a boca para falar ou quando escrevemos sobre alguma coisa, ou ainda, quando não fazemos nenhuma das duas alternativas, ou seja, quando falamos “sozinhos”, por meio do discurso monológico. O “sozinho” colocado entre aspas é crítico por natureza, pois entendo que jamais estamos sozinhos, mesmo quando pensamos que estamos, pois se somos sujeitos do discurso, e não existe discurso que fale entre si porque todo discurso ou toda palavra só sobrevive diante de outros discursos ou diante de outras palavras, o que os estudiosos em geral chamam de processo interdiscursivo ou processo intertextual, então, o signo “sozinho” jamais se encontra realmente sozinho, pois vozes habitam esse mundo solitário, o “sozinho” está sempre sendo interpelado, silenciosamente, por uma “força outricista”. Enfim, o “sozinho” está, ininterruptamente, acompanhado por um outro que nele habita. Não existem formas fixas, essencialistas, puras e individualizadas, interpeladas por uma prisão de um “eu” a ele mesmo. Carregamos em nós o outro a que tão bem discutiu Mikhail Bakthin em seu livro Marxismo e Filosofia da Linguagem (1995), como também outros pensadores como Emmanuel Levinas, Judith Butler, Michel Foucault e Jacques Derrida, principalmente Levianas em sua obra intitulada “Entre nós: ensaios sobre a alteridade” publicada em 2005.
O imaginário ronda e sonda-nos diariamente, mas cabe a cada um, como sujeito pensante e potente, fazer uso desse “fantasma” inteligentemente, tornando-o como eficiente fator construtor de nossa formação ideológico-discursiva analítica e criticamente, historicamente contextualizada e semanticamente bem estruturada, alinhada de acordo com “empoderadas estruturas” que desestruturam as estruturas dominantes, formadoras de ideias alienantes, imperialistas e preconceituosas. Mas sempre correremos o risco de estarmos fechando o nosso discurso, diante do outros discursos que existem em contradição ao nosso, formados por outras estruturas que, de acordo com o nosso pensamento crítico, são discursos obsoletos e ultrapassados, permeados por estruturas que conservam as estruturas do poder no lugar de ocupação ideológico-discursiva.
O tema “As ciladas do imaginário” é comovente e chamativo, porém condiz com o contexto político atualmente presente no Brasil e em boa parte do mundo, como também faz parte de muitas pesquisas desenvolvidas nas grandes e pequenas universidades. Todavia, entendo que é preciso vigiar para não cairmos, nós, leitores críticos, nas ciladas desses misteriosos e intrusos “fantasmas”, haja vista que pensar é submeter a esse imaginário, e a memória sem imaginação não subsistiria. Enfim, sem imaginário, o mundo inexistiria, pois tudo tem um teor fortemente tecido por essa força, essa corrente que intrinsecamente faz parte de nossa construção humana. Mas, quando o sujeito aceita ser dominado por um imaginário constituído por estruturas individualistas, essencialistas e centralizadoras, onde só se aceita uma única forma de discurso ou de pensamento humano, corre o risco na qual a humanidade já presnciou durante a Segunda Guerra Mundial, com a prática das ideias de Adolfo Hitler em torno de um imaginário purificador do conhecimento, ou seja, um discurso respaldado por uma ideologia branca, homogênea, fixa e desumana, onde as diferenças são eliminadas do contexto unificador, formando um sistema totalitarista, ditatorial e terrorista, que, no séuclo passado, eliminou milhares de judeus por toda a Europa em nome de um sistema político-ideológico monstruoso, destruidor, idealizado por um homem que, como sabemos, não possuía nenhuma “raiz pura” ou essencialista, como jamais ninguém possuira nem possuirá. Pesquisadores como Stuart Hall, Franz Fanon, Hami K. Bhabha, Nestor García Canclini, Gayatri Spivak, entre outros, deixaram claramente expresso, cientficamente e socialmente comprovado, acerca desta questão, em torno da inexistência de línguas ou culturas formadas por estruturas puras, fixas e fechadas entre si. Todas as cultura são híbridas, por natureza.
As ciladas do imaginário produziram quantidades infinitas de discursos interpelados por ódio, preconceito, desigualdade e desrespeito. Além do nazismo reprodutor de uma máquina de morte sem precedentes na História, também tivemos outros sistemas de pensamento postos em prática pelo homem por meio do mal uso do poder na terra. Refiro-me ao proceso ideológico-discursivo que escravizou, durante muitos anos, negros, mestiços, afro-descendentes e tantas outras minorias que viviam a mercê desse sistema conhecido e investigado por muitos estudiosos, chamado Colonialismo. Esse sistema de poder classificatório e reprodutor de terríveis desigualdades sociais, alimentou a humanidade durante muito tempo. Exemplo histórico que confirma as ciladas do imaginário e que, ainda hoje, continua a vigorar em suas formas inovadoras conhecidas por outros nomes como liberalismo, neoliberalismo, capitalismo global, colonialidade do saber, colonialidade do poder, colinialidade do ser. Esses três últimos conceitos são muito difundidos de forma críta por penadores como Walter Mignolo, Aníbal Quijano, Boaventura Sousa Santos e Inocência Mata.
Assim, termino esse ensaio em forma de crônica, se assim posso chamá-lo, lembrando que tudo que eu acabei de escrever foi fortemente influenciado por leituras feitas por mim. E ao ler meu próprio texto (discurso) percebo como a polifonia ou pluralidade de vozes fazem parte de meu elaborado discurso e como o imaginário está presente, fortalecendo uma memória discursiva que faz desse texto um texto crítico, pois ele aponta um problema do qual sabemos que não podemos controlá-lo, mas podemos evitar que sistemas de pensamento, movido por um poder imaginário que tira de cena os referenciais da alteridade, deve ser combatido com todas as forças de minha alma, com todas as forças dos signos que conseguem sair do centro opressor e colonizador, das zonas de conforto, girando e movendo em territórios ou espaços-tempos que colocam, acima de tudo, o respeito às diferentes formas de manifestação verbal, pois como diz Charles Chaplin, em seu “Último Discurso”:
“Neste mundo há espaço para todos. A terra, que é boa e rica, pode prover todas as nossas necessidades. O caminho da vida pode ser o da liberdade e da beleza, porém nos extraviamos. A cobiça envenenou a alma do homem... levantou no mundo as muralhas do ódio... e tem-nos feito marchar a passo de ganso para a miséria e os morticínios. Criamos a época da velocidade, mas nos sentimos enclausurados dentro dela. A máquina, que produz abundância, tem-nos deixado em penúria. Nossos conhecimentos fizeram-nos céticos; nossa inteligência, empedernidos e cruéis. Pensamos em demasia e sentimos bem pouco. […] Soldados! Não vos entregueis a esses brutais... que vos desprezam... que vos escravizam... que arregimentam as vossas vidas... que ditam os vossos atos, as vossas ideias e os vossos sentimentos! Que vos fazem marchar no mesmo passo, que vos submetem a uma alimentação regrada, que vos tratam como um gado humano e que vos utilizam como carne para canhão! Não sois máquina! Homens é que sois! […]”.
Estejamos de olhos bem abertos e preparados para pensar, antes de agir, para que não sejamos presas fáceis de discursos alienados, permeados por um imaginário, que esconde atrás de si, estruturas enraizadas em ideias fascistas, imperialistas e violentas.

 

 

 
 
Publicado no Livro de Ouro do Conto Brasileiro - Edição 2018 - Agosto de 2018