Neri França Fornari Bocchese
São Paulo / SP

 

 

Compradores de cães

 

 

Diziam os moradores de Bom Retiro, que lá pela década de 1940, apareceu na Villa, que começava a ser chamada de Villa Nova, um caminhãozinho. Era um fordeco, como diziam. Ninguém sabe ao certo de onde surgiu. Só sabiam que tinha vindo lá das bandas do Sul.
Eram eles compradores gaúchos, identificados pela roupa que  usavam, bombachas largas, as botas que calçavam, chapéu de barbicacho  e, lógico, o linguajar inconfundível.
Porém o estranho foi o que eles vieram comprar. Vindos de tão longe por estradas quase sem condições, buscavam cachorros. Um fato tanto inusitado, mas como pagavam bem, não foram questionados.
Se bandearam para o interior da Vilazinha. Onde escutavam um latido, paravam o caminhão e se achegavam. Logo eram recebidos pelos donos do sítio. Chamavam atenção. Não vinham a cavalo, como quase todos.  A criançada fazia fila para entrar na cabine e vasculhar com curiosidade. O volante, as luzes que até piscavam, foram a maior das atrações.
Depois dos cumprimentos calorosos, comunicavam o motivo da visita. - -Viemos comprar os seus cachorros. Quantos cães o senhor tem?
Faziam o negócio sem pechinchar. Não escolhiam a raça, a cor ou o tamanho. Ainda, nem queriam saber das condições físicas dos caninos. Se eram saudáveis ou tinham alguma doença. Logo a carga ficou completa. A carroceria do caminhão não era lá muito grande, superlotou.
Os compradores, satisfeitos e agradecidos, foram embora. Ninguém quis saber para que estavam os ditos Senhores, comprando cachorros. Trataram de se livrar dos guaipecas e bem depressa. Alguns vira-latas foram vendidos até com um certo prazer. Como quem diz:
- Você não tem nenhum valor, não valem a boia que comem, e eu ainda faturei uns bons trocados.
Pobre amigo do homem. Nem um carinho, de despedida, os animaizinhos receberam. Um e outro conseguiram fugir. Embrenharam-se mato adentro. Ninguém os caçou. Foram ainda esbravejados:
– Quando vierem procurar comida, hoje à tardinha, vão ver o que irão receber. . .
Passados alguns dias, a Villa amanheceu em polvorosa, estava  diferente. Uma acuada só parecia um concerto desafinado.
Era cachorro por todo o lado, de todos os tamanhos, de todas as raças e cores. Estavam famintos. Uns briguentos, outros mais acomodados. Porém todos procurando desesperadamente por um pouco de comida.
Esse dia era um sábado. Dia em que os Colonos deixam os afazeres da roça e vão à cidade, ou melhor, para o centro da vilazinha, fazer umas pequenas compras ou simplesmente conversar. Passavam também no alambique em busca de uma pinga, e da boa.
Era muito cachorro pro tamanho do centro. Muitos estavam acomodados na igrejinha, pois no pátio não havia ninguém e assim puderam dormir no chão do porão, sem serem incomodados.
Quando os agricultores foram chegando, com seus cavalos bem encilhados, os aperos bonitos, pelegos coloridos, a cachorrada de bom olfato foi ao encontro dos seus antigos donos, nem tão amigos assim. Porque quem é dono mesmo, não vende o seu cão de estimação. E amigo fiel. Ainda um animal indispensável nos afazeres da colônia.
 Alguns Senhores foram de imediato reconhecidos pelos seus cachorros. Que felizes pulavam e os lambiam sem cessar.
- Como esses cachorros estão aqui? - Perguntavam-se.
Os bodegueiros da Villa disseram:
- Não sabemos, amanheceram por aqui. Num latido sem cessar. Estão famintos.  Não sei como os seus donos os abandonaram. . .
Alguns dos homens se entreolharam. . . . Falarem que tinha vendido os pobres animais, ficava pior ainda. Por isso, se calaram.
Os mais bondosos, até pediram uma volta de linguiça e jogaram aos cães transpassados de fome.
Fizeram as suas compras e, com o peito estufado, abriram a guaiaca, puxando uma nota de maior valor:
- Até cédulas de 500 mil réis, apareceram.
Ao receberem a cédula, os bodegueiros mesmo sem muito conhecimento, mas acostumados a manusear dinheiro e moedas de réis perceberam de imediato a enganação.
Eram elas falsificadas. Uma imitação bem grotesca.
- O seu dinheiro é falso...
- Como?? Está duvidando de mim?? Eu, com dinheiro falso??? Recebi quando vendi os porcos, na safra passada...
Como as vendas não eram tantas assim e, os Colonos que faziam as compras eram conhecidos dos bodegueiros e, ainda uns dos outros, todos estavam com dinheiro falsificado...
A luz da Verdade apareceu. Os compradores de cachorros. . .
Agora se explica o porquê das compras. É compadre, caímos no conto não sei de quem...
- Eles ofereciam uma cédula grande na compra do cachorro. Muitas vezes não tínhamos nem troco suficiente.
Como era m bonzinhos deixavam o troco miúdo com a gente.
Essa gauchada, sem respeito vamos atrás deles.
Como estavam de caminhão, embora as estradas fossem ainda quase picadas, já estavam longe.
Uns dois ou três mais decididos encilharam os melhores cavalos e saíram em perseguição.
Logo desistiram. Perguntando aos moradores de beira de estrada  e também no Telégrafo Pato Branco. . .
- Viram um caminhão passar por aqui?
- Vimos sim. Mas já faz um dia  e meio que por aqui passaram. Já devem ter cruzado o Rio Uruguai. Estavam com pressa.  Só pediram  queijo e salame para comer. Como tínhamos pão recém-desenfornado aceitaram também. Pagaram a gente sem pechinchar como fazem os gringos,  nem comeram aqui. Iriam se alimentar na cabine do caminhãozinho. Diziam que precisavam chegar logo em casa. Era urgente.
Explicada então a famosa compra de cachorros. Pagavam-nos com uma cédula graúda e falsa. O troco que devolvíamos era sim de dinheiro legítimo...
 - De onde eram, para podermos dar parte na Delegacia ninguém sabia. Nem perguntaram. Ninguém anotou a placa do caminhãozinho.
Só pensaram em se desfazer da cachorrada. . .
Voltaram para o centro da Villa cabisbaixo. Enganaram-nos, que nem Patos bobos, caímos na conversa desses forasteiros.
Fomos logrados na nossa própria casa. . . Ainda bem que deixaram os nossos cachorros assim não ficaremos com peso de consciência.
Como chegar em casa e contar o ocorrido. A minha patroa não queria vender o nosso Valente. . .
Dizia ela:
- Quem vai cuidar da propriedade? Quem vai buscar a vaca Mimosa no potreiro?
A lição que fica.  A ganância humana é maior que a ingenuidade.
Ela sempre esteve presente, entre quem busca o lucro fácil, mesmo que a venda ou a compra seja de pobres cães, os melhores amigos do homem.

 

 

 

 
Poema publicado no livro "Mutretas, Xavecos e Pilantragens" - Contos - Janeiro de 2018