José Faria Nunes
Caçu / GO

 

 

Um jantar mais que especial


            A capela quase cheia demonstra o prestígio da família do noivo. Entro ao som da “Ave Maria”, de um long-play antigo, rodado em um toca-discos dos anos 60. A música, tocada em todos os casamentos de notáveis na cidadezinha, a exemplo da família do noivo, de tradição ruralista. 
            Apesar de pequena a capela, o corredor entre os poucos bancos rústicos parece-me comprido demais. Em pé junto aos respectivos bancos os convidados, com os olhos fixos em mim, como se eu fosse uma caça na mira de uma arma certeira. 
            Um suplício aquele casamento arranjado por minha irmã e meu cunhado. 
            - Ocê tem que casá cum rapaiz de futuro, de boa famiia. 
            Minha mãe também dá força para o casamento. Afinal somos pobres e eu tenho que garantir meu futuro e, por acréscimo, o futuro da família. Não posso repetir o erro de escolha financeira de minha irmã. 
            Pergunto: “que futuro é esse, com um casamento sem amor?” Dinheiro conta, mas não é tudo. O amor é mais.
            - Cum tempo ocê vai acabá gostando dele. É rapaiz bão, trabaiadô. A famiia dele é rica, respeitada, ocê vai tê o que quisé, do bão e do mió.
            Terminado o casamento todos pegam seus cavalos amarrados na gameleira perto da capela. Cada um segue para sua casa e eu, agora casada, com o marido vou para a casa do pai dele, na fazenda. 
            Meu sogro cede para nós uma gleba de terras na vertente que deságua no ribeirão. Meu marido constrói uma casa de paredes de tábuas e telhas comuns e nos mudamos. 
            Apesar de rústico, ele é um homem bom. Lá do jeito dele, faz de tudo para me agradar. E eu me esforço para corresponder à sua dedicação.
            Descobrimos que não podemos ter filho. Esterilidade minha ou dele. Como o peso do fardo a responsabilidade cai mais sobre a mulher, as consequências são óbvias. A culpa é minha, embora nenhum de nós tivesse feito o exame de fertilidade.
            A estranheza fica por conta do fato de, em ambas as famílias, minha e dele, cada filho até então casado ser de prole numerosa. Daí as indagações:
            - Como não é segredo que ela não queria se casar, pode ser que de propósito esteja descumprindo o principal dever conjugal, que é dar filho ao marido. 
            Calada, engulo cada ofensa. Eu mesma não sei se sou culpada. Ou se é ele. Aliás, neste caso, não há culpa. São contingências. Nenhum de nós fez exame pré-nupcial. 
            Até há pouco eu nem sabia da existência desse exame. Minha madrinha de casamento é que, recentemente, me contou. Meu marido também não sabia.
            De família conservadora, nenhum de nós quis abrir o jogo e descobrir a verdade. Preferimos tapar o sol com a peneira e ignorar as insinuações. Se alguém pergunta, maliciosamente, a resposta vem de pronto:
            - Estamos dando um tempo. A “tabelinha” tem nos ajudado.
            O tempo desgasta a situação. E a relação começa a se deteriorar.
            Até gente fora do círculo familiar começa a se intrigar: para casais casados não se admite ficar no “zero a zero”. Tem que ter filho. Cada filho, preferencialmente homem, é um gol de letra. Um troféu para o pai que tem que dar satisfação aos amigos da família.
            Os mais íntimos chegam a repetir os paradigmas da cultura de então: “homem que é homem tem que provar que é macho. Tem que ter filho”.
Para as famílias da época amor e bem-estar são questões consequentes, cuja validade e fundamentos não se discute na família.
            Temos que ocultar o malogro, sem escancará-lo. Ninguém deve perceber o que se passa na intimidade, nessa relação insossa, inodora, sem cor.
            A vida reclusa na roça torna-se insuportável. Eu, que chegara a sonhar em me tornar professora, padeço ao retornar à rotina da roça, de onde saíra ainda criança. 
            A consciência me cobra mais tolerância, pois o infeliz do marido também carrega parte do peso. 
            De início percebia nele maior tolerância mas, por último, vem se esgotando. Contém-se cada vez menos. Até já grita comigo. Demonstra arrependimento do feito, mas separação fica fora de cogitação.
            Aconselhado por seu melhor amigo e padrinho de casamento, decide comprar um carro. Sair da mesmice da roça. 
            Compra um Jeep.
            Em finais de semana vamos para a cidade. Não é mais a “currutela” dos tempos do casamento. No lugar da capelinha, uma moderna igreja matriz. Tem até relógio na torre. Tem escolas de primeiro e segundo graus, ruas calçadas de paralelepípedo, água encanada, luz elétrica, conforto razoável para o padrão urbano local. 
            Concluo que o melhor é retornar aos estudos. Obstinada, procuro realizar meu sonho e o de minha mãe viúva: formar-me professora. 
            Aprendo a dirigir. A fazenda, perto da cidade, deixa de ser obstáculo. A dona de casa na roça torna-se, de novo, estudante. E com assiduidade de fidelidade canina. 
            Apaixono-me pela leitura e, com o estímulo do orientador educacional da escola, começo a escrever. Um ou outro de meus poemas são publicados no informativo local.
A admiro a inteligência e versatilidade de alguns professores, sobretudo do professor orientador.
            Outubro, véspera do dia do professor. Na escola a decisão: comemorar a data com uma seresta na casa de cada professor.
            Nesse dia, ou melhor, nessa noite, descubro onde reside o professor-orientador.
            Passa noite. Faço uma visita ao professor.
            Um casebre de dois cômodos de alvenaria, sem reboco, coberto de telhas, piso de chão batido. Na casa a água é de cisterna e falta banheiro. Usa-se chuveiro de balde com banhos na privada de buraco na casinha rústica aos fundos do quintal.
            Como pode uma pessoa tão inteligente, tão desenvolta, verdadeiro líder, não ter nem onde morar com dignidade?
            Alugo uma casa na cidade e passo a compartilhar minha vida de ruralista com a vida urbana. 
            No aniversário da cidade convido o professor para um café em minha casa. 
            Dissimulando intencionalidade, conto-lhe que meu marido está na fazenda e só vem para a cidade no final de semana. Então convido-o para jantar comigo aquela noite. 
            No jantar a conversa torna-se reveladora. Ele me conta uma história interessante e que me emociona:
            - “Tempos passados, um garoto saindo da adolescência conheceu uma linda moça e gostou muito dela. Mas ela nem notava a existência dele. E um dia ela se casou com um fazendeiro e o adolescente, desencantado, por muito tempo ficou sem vê-la. Hoje, curiosamente, agora está jantando com a moça de sua adolescência”.

 

 


 




Conto publicado no "Naquela noite" - Contos selecionados
Edição Especial - Novembro de 2020

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