Marina Moreno Leite Gentile
São Paulo / SP

 

 

O filho com dois nomes

            

            Ela fora criada em um ambiente de pessoas humildes, em uma área de agricultores, distante da cidade. Desde pequena fora preparada para aprender a cozinhar, costurar, bordar e nunca foi para uma escola. Seu pai dizia que mulher era para cuidar de casa, dos filhos e do marido. Assim ocorreu com sua avó, sua mãe e provavelmente seria o destino dela também.
            Para ela estava tudo certo, era isto mesmo que desejava.  Era caprichosa com a casa, sonhava ter filhos, constituir uma família. Onde moravam havia moças  na mesma faixa etária e o que faltava era pretendente. Uns eram jovens ou velhos demais, outros já tinham namorada firme. Na realidade  muitos dos rapazes, quando atingiam certa idade, seguiam para a capital com o objetivo de garantir um futuro melhor. Seguiam com o sonho, todavia alguns retornavam desconsolados. Na cidade era necessário ter estudo para competir, encontravam  apenas os serviços pesados, mão de obra braçal.
            A garota protagonista desta história tinha um amor secreto, ninguém sabia.  De vez em quando ela ficava suspirando pelos cantos, com sorriso nos lábios e brilho nos olhos. Ela estava preparando o enxoval, bordando, costurando manualmente, tudo para que a sua casa ficasse bonita.  O seu amor seria revelado um dia.
            Tudo muda de repente e isto também aconteceu com ela. O senhor José Natal chegou em sua casa com uma notícia ruim. Um acidente ocorrera com a família de um sitiante vizinho, vitimando fatalmente três irmãos, entre os quais o seu amor. Ninguém sabia por quem ela suspirava e naquele momento também não interessava divulgar. Guardou para ela o sonho desfeito. Todos perceberam a mudança que acontecera com ela, mas ela não expos seu segredo a ninguém, nem para sua mãe. Dali em diante deixou de ser aquela garota meiga, serena; passou a demonstrar comportamento triste, amargo. 
            Passaram-se alguns anos e de repente ela começou a se arrumar, a sorrir, a bordar novamente. A chama da paixão batia em seu coração. Um vizinho retornara de São Paulo e  demonstrava simpatia com ela. O rapaz era respeitador, atencioso, trabalhador. Em pouco tempo começaram a namorar, depois noivaram e finalmente um novo casamento acontecia na região. Foi uma festa alegre, com muitos convidados. Depois de alguns meses ela ficou grávida,  realizando o sonho de ser mãe.
            Naquela época ninguém ficava sabendo se seria menino ou menino, antes do nascimento. No parto acontecia a surpresa. O jovem papai desejava uma menina, pois queria colocar o nome de sua mãe. A jovem mamãe não tinha preferência. Como ela concordou que a sogra fosse homenageada, então fizeram um acordo. Se fosse menina, o papai decidiria. Se fosse menino, o nome seria escolhido por ela.
            Chegou o dia especial, nem deu para ir até o hospital. A criança nasceu em casa, pelas mãos da avó materna, que era parteira.  Felizmente foi tudo tranquilo e rápido. Era o primeiro neto para as duas famílias, realização para ambas. Em poucos dias o jovem papai foi registrar o filho, voltou alegre, guardando a certidão em uma gaveta. A esposa estava cuidando do bebê e tão logo  conseguiu fazer o bebê dormir, apesar de ser analfabeta,  pediu a certidão para ver.  Ela olhou o documento com muita admiração, encantamento, os olhos ficaram marejados de emoção. 
            Tudo estava ótimo, a criança nascera perfeita. Apesar do instinto materno, no início sentiu um pouco de insegurança. Normal. Ela  já se referia ao menino, carinhosamente, no diminutivo. Todas as atenções eram voltadas para ele. Chegava uma visita e ela sempre chamando o bebê com o nome tal. 
            A vacinação é importante, por isto em poucos dias ela foi até a cidade para cadastrar a criança no posto de saúde, acompanhada de sua mãe. Chegando lá entregou o documento e a atendente preencheu uma ficha, disse que em poucos instantes chamaria. Ela ficou esperando. De repente chamaram um certo nome, com o mesmo sobrenome do marido dela.    Ela percebeu, achou estranho, mas ficou calada. De repente chamaram novamente, e novamente. Como ninguém foi até o local, chamaram outro bebê, e outro, e outro. Ela ficou por último. Achou estranho,  mas nada falou. E então alguém sai de uma porta e fala para ela: -  Já chamamos seu bebê, acho que a sra não escutou.  Entre por favor. 
            A enfermeira vacinou o bebê, tudo ok.  Mas quando a atendente falou o nome da criança, a jovem mãe ficou espantada, dizendo: - O meu bebê não tem este nome, houve alguma confusão. A atendente então pega a certidão de nascimento da criança, lê o nome da mãe, o nome do pai e do bebê.  Ou seja, era e não era. 
            Aquela mãe sentiu um aperto no peito, começou a chorar. Naquele instante entendeu tudo; seu marido não respeitou o combinado, deu outro nome ao menino e nem comunicou para ela. Sentiu-se traída. Se ele fosse justo, teria contado a verdade. Pode ser que não gostasse no primeiro momento, mas aceitaria. Ocorre que tudo foi feito de um jeito esquisito,  traindo a confiança. O bebê tinha  poucos dias de nascido, e a mamãe já havia se acostumado com o nome escolhido por ela. Era difícil mudar assim, de repente, principalmente por estar magoada. Até que ela tentou, mas por mais que se esforçasse, não conseguia chamar seu bebê com o nome da certidão.
            Naquela noite ela teve dificuldade para dormir, pensando no que o marido fizera.  Até o céu estava estranho,  escondendo todas as estrelas. Elas também devem ter sentido mágoa. 
            Isto ocorreu há quase quarenta anos. Nem ele próprio se reconhece pelo nome real.  Em casa e na família sempre foi chamado pelo nome escolhido pela mãe. Atualmente, somente as pessoas do seu trabalho chamam-no pelo seu verdadeiro nome.  Para os demais ele é:  Marcelo ou  Marcelinho. A propósito, o Marcelo que não é Marcelo teve um filho e,  para alegrar o coração da vovó,  adivinhem o nome do neto...    

 


 




Conto publicado no "Naquela noite" - Contos selecionados
Edição Especial - Novembro de 2020

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