Neri França Fornari Bocchese
Pato Branco / PR

 

 

O dia que choveu açúcar

            

          

            Como por muito tempo fui uma andante de um Estado para outro, já conhecia a neve por ter residido em Faxinal dos Guedes, em Santa Catarina. Foi mais intensa que essa de Pato Branco. Durou quase uma semana.
            A neve faz parte do nosso imaginário de filhos ou netos de Imigrantes europeus. Por isso ela encanta. Traz lembranças de uma Pátria, de um tempo vivido.
            No Natal, o armar o Presépio, o pinheirinho enfeitado com algodão. ...É uma lembrança maravilhosa.
            Os longos invernos vividos pelos avós ou bisavós, tendo que ficar muitas horas nos estábulos para se aquecerem junto ao calor  do gado, mesmo assim fica a saudade.
            Também os píncaros dos Alpes, branquinhos sempre foram uma imagem querida e especial.
            Mas o 21 de agosto de 1965, foi diferente. Foi assim, vamos dizer, apareceu de repente. Tanto que estávamos estudando. Cursávamos a Escola Normal, de muitas vivências, entre elas a da neve. 
            Olhando pelas janelas da sala de aula, percebemos os pinheirinhos plantados em volta do Educandário, sendo enfeitados pelos flocos branquinhos. A aula então acabou.
Saímos do Colégio das Irmãs, localizado não distante da Praça Presidente Vargas. Era uma festa. Como se fosse um domingo festejando São Pedro Apóstolo, padroeiro da cidade.
            As pessoas felizes, apesar do frio. Muita gente circulando pelas ruas, estavam extasiadas. Principalmente os jovens que ainda não conheciam a neve.
            O Pato Branco se tornou de fato Branco. O pato esculpido de neve, de asas abertas, com expressão alegre, o bico entreaberto e um bonezinho na cabeça, virou um símbolo. Embora a escultura só exista em fotografia, ela é reverenciada.
Morávamos longe do Colégio e andávamos a pé. O calçado não era próprio para a ocasião chegamos em casa com os dedos congelados. 
            Mas a alma feliz. A neve por ser branca, transmite paz. E é bonita. Faz bem vê-la cair do céu, é como se fosse um recado chegando à Terra.
            O verde das árvores que ainda eram muitas, sobressaindo entre os chumaços branquinhos, fizeram muito bem. Foram mais ou menos uns 10 cm de flocos acumulados.
Trouxeram a graça de tempos idos. De vivência em outras regiões brasileiras onde os invernos são mais rigorosos. Ainda os descendentes de imigrantes lembraram das terras de além mar.
            Pato Branco coberto de neve. As árvores com os galhos pesados encurvados. Os telhados parecendo cartões de Natal.
            Em casa, o fogão a lenha esquentava e transmitia aconchego. A sopa de galinha caipira, com agnoline aquecia o corpo e o coração.
            Lá em casa, a mãe e o pai contaram muitas histórias das nevascas do Rio Grande do Sul.
            O pai foi ex-combatente e, com os olhos marejados ele disse: 
            - Na noite de Natal foi assinado uma trégua no Campo de Batalha no Campo Italiano, e nós fomos assistir à Missa do Galo que era ainda celebrada à meia-noite e quando saímos da Igreja estava nevando.
            - Ao transpor a porta me emocionei. Eram flocos enormes chegavam a fazer barulho ao despencarem no chão.
A Santa Missa foi na Catedral dedicada a Virgem Maria, em Pisa. A igreja em estilo Românico Toscano faz parte da Piazza dei Miracoli, hoje declarada Patrimônio da Humanidade, onde está localizada a famosa Torre de Pisa, inclinada, desafiando a imaginação.
            Ele repetia:
            - Eram uns flocos grandes, deixaram a gente feliz, embora pudéssemos ouvir ao longe os tiros de canhão. Os alemães não cumpriram o acordo. Voltamos de imediato para o nosso Acampamento.
            Também ele contava do ocorrido em uma Celebração, nessa mesma Catedral, na cidade de Pisa, em que os brasileiros entraram com a imagem de Nossa Senhora Aparecida e estavam cantando o Hino Nacional, quando os alemães fizeram um bombardeio aéreo. E, os soldados não interromperam o belo Hino Brasileiro.
            Na barraca em que dormíamos, estava muito frio. O pequeno colchão que ganhamos ficava no chão e, não era muito alto. E, claro a umidade chegava até o corpo da gente. O acampamento era próximo a Pisa. Um antigo lugar de caça à raposa dos nobres italianos.
            E, nos aqui em terras brasileiras, chegando em casa perto do meio-dia, também fizemos os nossos bonecos de neve e, como adolescentes,  jogamos bola de neve, uns nos outros.
            Isso claro só na vontade, pois a Dona Eloá, não permitia que a gente se molhasse e sujasse o calçado. Mesmo que a próxima nevasca fosse levar mais 60 anos.
            Tenho ainda na memória um pessegueiro florido, cheio de neve. A neve branquinha e as florzinhas de um cor-de-rosa forte, bem coloridas. Uma imagem muito bonita que os anos não apagaram
            São recordações queridas que acompanham a gente por toda a vida. 
            Nos dois anos seguintes nevou um pouquinho. Mas também trouxe recordações. No ano de 1966 outras lembranças queridas, voltando da escola, a neve caindo, os pés e as mão quase congelados. 
            O corpo estava quente, pois a distância percorrida era longa e tudo a pé, a gente não congelava. 
            As meninas da Tia Elva, estavam todas lá em casa. Era o quarteto querido. Tivemos uma infância em comum, a qual ficou marcada, pois nos uniu para sempre. Apesar dos grandes percalços da vida  
            Como era impossível, sentir a sensação da neve caindo, ou caminhar por entre os flocos.
            Carregamos cada uma delas para que sentissem o espetáculo que os céus proporcionam gratuitamente. Sentir a neve cair no rosto. Não era como uma chuva, era bem diferente. Sensação única.
            A menorzinha, com um ano e meio, com o bonito nome Marielva, levou as duas mãozinhas na cabeça e disse num tom bem sonoro e maravilhado:
            - Uva de Uco.
            Cuja tradução é: “Chuva de açúcar”. 
            Com aqueles cabelos encaracolados e bem pretos salpicados de branco, ficou linda!
            Os anos se passaram, mas a memória trouxe de volta. Pois o inverno rigoroso e promessa de muita neve, ativou as lembranças.
            O inverno tem os seus encantos. Um fogão a lenha ou uma lareira acesa, o fogo crepitando, o pinhão sapecado na chapa, batata doce assada no forninho, a conversa em família, compensa o frio do lado de fora. Traz alento e, redobra a saudade do rincão querido ao ouvir o Minuano soprando.
            Dormir com uma coberta quentinha, agasalhando o corpo faz bem para a alma e, sabendo que no domingo não é preciso levantar muito cedo.
            Naquela noite gelada, dormimos com a coberta de pena de ganso que espanta qualquer frio.
            Que possamos vivenciar a muitos outros invernos com a bonita e saborosa: Chuva de Açúcar!


 




Conto publicado no "Naquela noite" - Contos selecionados
Edição Especial - Novembro de 2020

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