Alfredo Acosta Backes
Aracaju / SE

 

 

Malditos ladrões de sangue

            

          

         A gurizada está jogando bola no campinho, em frente à minha casa e eu morrendo de vontade de estar junto deles. Estou sentado em uma velha cadeira com a minha perna esquerda no chão e a direita apoiada sobre um banquinho de madeira. Um enorme curativo se destaca na panturrilha direita. Olho a perna e penso: - Malditos ladrões de sangue!
           Em uma segunda-feira da primavera de 1977, dona Luíza chega apressada, erguendo as pontas do seu vestido cinza e longo, abre o portão que dá para o pátio, adentra e põem-se a gritar.
           - Dona Joana! - Ela berra uma, duas vezes até que mamãe aparece na porta.
           - O que foi dona Luíza?
           A vizinha conta que seu pai leu, em um jornal, que várias crianças estavam sendo sequestradas por homens em uma “Kombi preta” a fim de retirar todo o sangue delas, deixando-as quase mortas à beira da estrada.
           - Será que é verdade?
           - Não é “inventice” dos velhos, comadre? - Pergunta mamãe, desconfiada.
           Porém, dona Luíza jura que é verdade e a notícia se espalha pelo bairro todo. Luíza é uma senhora simpática que sempre encontra-se disposta a ajudar, porém, exagera nas histórias. Todos a conhecem e a respeitam, ela é a parteira e curandeira do bairro, faz suas simpatias – como ela denomina – sem cobrar nada. No dia seguinte ouvi um senhor conversando com outro mais velho:
           - É difícil descobrir, de forma rápida, se algum fato é real ou mentira! – disse o mais velho.
           - Verdade! – disse o outro.
           - Não temos acesso à informação rápida, dessa forma, é melhor prevenir do que remediar! – complementa.
           - Vamos alertar a gurizada para que se atinem dos perigos! – falou o mais velho.
           Tenho oito anos quase nove, estou na segunda série e a escola fica a um quilômetro, chego lá após atravessar uma rua movimentada, algumas vielas e um bosque assustador de Eucaliptos. Temos uma turma para ir e voltar, formada por três guris e duas gurias. Vamos e voltamos juntos, por recomendação de nossos pais.
           Assim como toda a população, vivemos sob superstições e crendices contados por nossos pais e avós. Somos de uma cidadezinha do interior do Rio Grande do Sul, fronteira com a Argentina, onde predominam crendices sobre negrinho do pastoreio, salamanca do Jarau, mula sem cabeça e tantas outras histórias narradas como se fossem verdades.
           Vivo envolto dessas crendices e o medo, muitas vezes, domina a mim e a gurizada. Portanto, a história da Kombi com ladrões de sangue de crianças nos assustou muito, de forma especial ao Lagarto.
           Meu amigo Lagarto é o medroso da turma, moreno de cabelo liso e curto que anda sempre com a mesma calça jeans rasgada no joelho. Possui olhos grandes que, quando assustado, parece que sai da órbita ocular. Dino se acha o mais corajoso, mas basta surpreendê-lo que se mija nas calças. Lembro quando vovô Nilton contou uma história de lobisomem em uma noite de lua cheia, em frente a uma fogueira. Cheguei por trás dele e uivei bem alto. Coitado! Deu um salto e gritou tão desesperado que se urinou nas calças.
           Marta é uma loirinha de olhos verdes claros e cabelos ruivos, meiga e carinhosa, sempre veste uma sainha até o joelho, variando as cores conforme o dia da semana. É a nossa confidente. Já Mônica é a mais quieta e séria, branquinha de cabelos pretos, lisos e longos, carrega sua mochila na frente segurando-a com as duas mãos.
           São seis e meia da manhã de quarta-feira, saímos de casa em direção à escola com termômetro marcando 10º C, frio o bastante para procurarmos lagartear – procurar a quentura do sol. Encontramo-nos na esquina e pomos a caminhar, fugindo das frias sombras.
           Davi sempre se vangloriando de sua valentia, em determinado momento ele fala que se os ladrões de sangue aparecessem, ele os encheria de socos e pedradas, todos riram bastante. Em nosso caminho o tal bosque de eucaliptos, fechado, sombrio, onde o sol não visita. Formado por grandes eucaliptos, assustador, mas teremos que enfrentar e caminhar por 200 metros dentre eles, por uma estradinha feita pelo pisotear das pessoas.
           Perto do meio dia voltávamos da escola, na frente do abominável bosque, paramos. Estamos com fome. Lagarto toma a frente.
           - Vamos lá, gurizada! – falou em voz alta.
           - Somos valentes ou cagões? – indagou.
           Quase que falei cagões, mas fiquei quieto.                               Atravessamos sem nada de anormal, porém, perto de casa, acontece algo que nos deixa paralisados.
           Não é que dobrando a esquina surge uma Kombi preta? Pior! – Na lateral, possui desenhada uma caveira sobre um rio de sangue.
           - Meu Deus! – grito.
           Davi urina nas calças, as gurias gritam horrorizadas, meu estômago encontra-se na boca e sinto o sabor acre do ácido estomacal. Saímos correndo, tropeçando uns nos outros e gritando. Mônica cai e esfola o joelho, ajudo ela a erguer-se e continuamos a correr. De repente, tropeço em minhas próprias pernas e tombo sobre restos de galhos secos de sina-sina – uma árvore pequena e espinhosa. Sinto uma agulhada e quando olho, vejo um espinho enterrado na panturrilha da minha perna direita. O maldito espinho era grosso e tinha próximo de 5 cm e, pelo menos, 3 cm estava lá, enterrado na batata da minha perna.
           A dor é surreal, grito, choro. Porém, lembro-me de olhar para a direção de onde viria a Kombi.
           - Cadê ela? - Olho de um lado, de outro e não vejo a maldita Kombi.
           - Dou graças a Deus!
           Lagarto e Davi me ajudam a erguer-me do chão e, apoiado neles, fomos para casa.
           Ao chegar narrei o acontecido, acabei parando no hospital para retirar o tal espinho. Passo por uma microcirurgia e fico uma semana sem ir para a escola e sem jogar futebol, só sentado em uma cadeira vendo a gurizada se divertir no campinho. Malditos ladrões de sangue!
           Numa tarde de verão ouço seu José - vizinho e melhor amigo de meu pai - falando sobre o acontecido conosco. Nesse momento, fico sabendo que a tal Kombi preta era de uma banda de “Heavy metal”. Ainda carrego um leve trauma do acontecido e meus amigos nunca se esquecem - sempre alguém lembra do acontecido - e até rimos uns dos outros.


 




Conto publicado no "Naquela noite" - Contos selecionados
Edição Especial - Novembro de 2020

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