Rozelene Furtado de Lima
Teresópolis / RJ

 

 

Naquela noite

            

          

       Edinelda mora numa cidade turística que é conhecida pela beleza de suas praias. O pai pescador, o irmão vendedor numa barraquinha do peixe pescado. A mãe prepara um peixe delicioso e a Edinelda serve os clientes que fazem fila para comprar a iguaria. E a vida segue no mesmo ritmo há anos a única mudança, que acontece raramente, são dias de chuva. Chove, ventania, a temperatura cai um pouco, quando passa, tudo volta ao normal. 
      O mar, os peixes, os turistas, os belíssimos crepúsculos e as auroras aconteciam numa rotina plácida de paz. 
       A moça morena, de uma beleza ímpar, boa estatura, corpo esbelto, com a pele queimada pelo sol e cabelos longos dourados encaracolados pelo vento, vivia contente com seu destino. Amava aquele paraíso confortável e acolhedor. Mal sabia ler. Falava bem e até entendia um pouco de outros idiomas por ter contato com pessoas estrangeiras. Feliz, sorridente, excelente nadadora, exercício que praticava todos os dias desde pequena. Nadar para ela é ficar líquida como a água do mar. Prazer inigualável. 
        Num final de tarde quando o pai saiu para pescar, soprava um ventinho estranho, uma brisa esquisita meio morna, ressecada e silenciosa. - Pai o tempo está estranho, o mar está muito parado, comentou Edinelda com o pai pescador. Ele respondeu tranquilo: - Não se preocupe minha filha, é quase lua cheia e a noite é muito boa para pesca. Os meus amigos já estão em seus barcos e quero ir junto com eles. Ela ficou olhando o pai entrar no barco pesqueiro.  
       Aquele barco já tinha enfrentado muitos desafios em águas bravias, sabia se livrar dos perigos e era fiel ao dono. Seu Lino dava um trato todo especial ao barco e o considerava como seu melhor amigo. Voltava carregado de peixes. Seu Lino levava sempre com ele na pescaria mais três ajudantes pescadores. 
      Para amenizar aquela sensação de que algo estava para acontecer o pressentimento  não era bom, soava coisa ruim. Tirou o vestidinho jogando a peça na areia, ela usava sempre um biquini por baixo da roupa, atirou-se ao mar e nadou por mais de uma hora. Entre o mar calmo e o céu crepuscular só ela e o seu entregar ao deleite de nadar. O todo completo o tudo estava presente naqueles momentos. Ela era água a água era ela. 
      De repente, apareceu uma onda enorme que a moça não conseguiu dominar. Deixou-se levar pela onda indo parar numa pedra. Foi então que viu que estava em alto mar. Uma tempestade se formava, ela não teria salvação se tentasse voltar. O mar enfurecido, a noite chegando trazendo um vento gelado. Edinelda sentia as chicotadas daquele vento no corpo quase nu. Então procurou uma forma de refugiar-se. Rodou em volta da pedra que tinha formato de uma enorme baleia deitada. Com o objetivo de se proteger não encontrou nenhum ponto seguro. Escalou a parte mais alta, se agachou e abraçou-se o mais forte possível. Para ela o anoitecer era o começo do amanhecer. Sem ter como pedir socorro, se resistisse ao frio da noite estaria a salvo.       
       As luzes da cidade pareciam menores que as estrelas do céu. Lembrou que quando tinha medo de alguma coisa a mãe pegava-a em seus braços, cantava canções que a tranquilizava e quando acordava já amanhecia. Começou a cantar, cantou todas as músicas que sabia. Ela imaginava que estava ninando o vento, a noite e o mar. Caso conseguisse que eles dormissem ela dormiria também, como acontecia quando estava aninhada no calor da mãe. Quando as ondas batiam com furor na pedra ela cantava o mais alto que podia para acalmar o mar. O vento soprou as nuvens negras e levou a tempestade para longe. O frio aumentava.  Resolveu cantar dançando para aquecer. E cantava dançando, dançou e cantou até não ter mais fôlego nem forças.  
       Na verdade ela deu um espetáculo de muitas horas. Exausta na luta contra o medo e o frio abaixou enrodilhando-se sobre a pedra numa posição ventral. Assim aconchegada, ouvindo a canção do mar, agasalhada no colo de uma lua longínqua e tímida se entregou vencida pelo cansaço abrigada pela madrugada dormiu um sono profundo quase mortal. 
       A magia da vida está na reciprocidade do respeito entre a natureza e o humano. Nesse caldeirão não cabe desistência.  Atitudes ridículas derrotam o medo, alimentam a esperança. Só é ridículo quem tem coragem. 
       Foi despertada por barcos de pescadores que estavam a procura dela desde o início da madrugada.  
       Naquela noite ela teve a certeza que a natureza é protetora, pode ser acalmada, ninada, gosta de ser valorizada, mimada e aprecia espetáculos de música e dança.  


 




Conto publicado no "Naquela noite" - Contos selecionados
Edição Especial - Novembro de 2020

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