Nicolly Bueno
Presidente Venceslau / SP

 

 

A suicida que não morreu

       

          Florbela era uma moça tão bela quanto o seu nome. Possuía traços delicados que se contrastavam, de maneira ambígua, com seu jeito áspero de se expressar, quando a vida lhe parecia ser injusta ou, pelo menos, oposta ao que ela desejava para ser feliz. Apaixonou-se poucas vezes, mas viveu suas paixões de modo avassalador. A felicidade parecia-lhe ser algo inatingível tamanha as angústias vivenciadas ao longo dessas experiências.
          Sua última paixão lhe feriu a alma. Florbela, como tantas outras mulheres, sofreu uma agressão física, cuja lesão doía-lhe no âmago de si até se transformar no ódio e no desejo de vingança. Planejou suicidar-se, mas ao premeditar sua própria morte descobriu, por si mesma, que era melhor matar do que morrer. Teve, entretanto, que passar pelo suplício de denunciar o agressor, fazer exame de corpo delito e ainda tentar recompor seu ego ferido.
          Florbela imaginava que a morte seria a solução para o fim de suas dores e de todo o seu sofrimento espiritual. Sua melancolia não combinava com sua beleza tão admirada quando pela rua ela passava. Decidiu acabar com seu objeto de amor, agora, de ódio e vestiu-se de maneira elegante, de modo que sua feminilidade jamais fosse contestada.
          Certo dia, à noite, foi ao encontro de sua vítima. Um sorriso discreto, seu olhar misterioso e sua voz baixa, convenceram seu ex-amor e atual agressor para uma conversa amigável. Foi até a casa do ex-amado, sentou-se numa cadeira de varanda e abriu a bolsa discretamente, tirando um punhal novinho, o qual escondeu debaixo da bolsa que estava em seu colo. Vaidosa, olhou-se num espelho que carregava consigo e, de repente, levantou-se e desferiu o primeiro golpe contra o seu agressor.
          Era tarde da noite. O rapaz deu apenas um grito. Uma coruja cruzou o céu escuro, como sempre, agourenta. Florbela tinha pouco tempo. Colocou a bolsa na cadeira e ajoelhou-se diante do corpo que já começara a sangrar. Com mais força, desferiu mais vinte punhadas no corpo já inerte e ria - não mais um riso disfarçado -  mas de plena alegria.
          A cada punhalada era como se a dor de sua alma fosse sendo curada. A felicidade que ela sentia poderia não ser plena, mas era indescritível. O sangue vermelho e ainda quente lavou não só as mãos da doce Florbela, mas lhe trouxe uma satisfação de uma mulher corajosa. Sua alma já não doía mais. E ela, que almejava ser suicida, nem sequer chegou a ser julgada como assassina, pois cada vez que lembrava que tinha sido espancada, dava uma gargalhada tão sincera que acabou morrendo de felicidade, debruçada sobre o corpo inerte e todo ensangüentado.

(Texto inspirado na poetisa portuguesa Florebela D´Alma Espanca que se suicidou no dia se seu aniversário em 8 de dezembro de 1930.)

 


 




Conto publicado no "Naquela noite" - Contos selecionados
Edição Especial - Novembro de 2020

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