Darcy Ribeiro
e o povo brasileiro
Nós,
brasileiros, ainda temos muito a fazer pela nossa autonomia enquanto
nação. As nossas conquistas mais importantes ainda hão
de vir, e não são, ao que se supõe à primeira
vista, as de ordem econômica. Antes delas, e até mesmo
como base para elas, precisamos, sim, conquistar definitivamente a nossa
autonomia cultural como nação, patenteando os direitos
de igualdade racial e permitindo que o brasileiro se expresse culturalmente
como "brasileiro", livre, sem se importar com o ranço
de qualidade que as nossas elites insistem em manter para garantir seus
privilégios.
A propósito, até mesmo como introito a este indispensável
entendimento, sugerimos a leitura do texto de Voltaire Schilling, com
edição de André Rocha, sobre o que pensava um
dos nossos mais brilhantes pensadores: Darcy Ribeiro.
.......
Darcy
Ribeiro, um dos mais eminentes intelectuais-políticos do Brasil
do após-guerra, falecido fevereiro de 1997, deixou uma esmerada
síntese sobre a diversidade geoétnica da população
brasileira no seu ensaio histórico-antropológico intitulado
O Povo Brasileiro(*), editado em 1995. Viu o país-continente
fortemente empenhado "na construção de uma civilização
original: tropical, mestiça e humanista". Uma "Nova
Roma" como gostava de dizer.
Antropologia
geral
A obra de Darcy Ribeiro pertence a uma geração de antropólogos
pós-coloniais. Os que, pós-Segunda Guerra Mundial, desejavam
romper com a antropologia eurocêntrica que via os habitantes de
outros continentes mais atrasados como naturalmente inferiores, vocacionados
para servir mais do que para mandar, sendo desqualificados para conduzir
o autogoverno.
Ao mesmo tempo, ele lançou-se à obra de fazer inclinar
o interesse pelas coisas do Brasil em favor do povo comum que compõe
esta imensa população miscigenada e muito pobre que se
abriga no país-continente.
No fluxo da época, aquela geração posicionava-se
de uma maneira crítica no tocante à política das
metrópoles colonialistas, apontando sistematicamente seus defeitos
e violações. Bem ao contrário dos historiadores
e ensaístas brasileiros-lusitanistas das épocas anteriores.
Em oposição a Gilberto Freyre (a quem ele não deixou
de devotar admiração apesar de lusófilo assumido,
que viu a nação brasileira de cima do olhar do patriciado
nordestino, particularmente do Pernambucano -Casa Grande e Senzala,
1933), Darcy esmerou-se em destacar o crioulo, o indígena, o
caboclo, o vaqueiro, o matuto, o caipira, e tanta gente mais. Esforçou-se
a realçar, desde os tempos coloniais (1500-1822), a modesta dignidade
destes e sua contribuição na construção
do país-nação. O livro de Gilberto Freyre, como
Darcy Ribeiro abertamente confessou, não é um tratado
acadêmico, mas procura a polêmica e a denúncia. É
lavra de um intelectual engajado nas lutas políticas e sociais
do seu país.
A
sociedade brasileira na colônia e império
A dualidade da sociedade brasileira, resultado da expansão ultramarina
lusitana do século 16, dava-se em dois sentidos: na relação
do reinol contra os nativos (as centenas e centenas de tribos que habitavam
o Brasil dos 1500), a quem a gente portuguesa tratou de submeter e reduzir
à escravidão e, quase que simultaneamente, na fundação
de uma unidade produtiva açucareira marcada pela relação
do senhor de engenho frente aos escravos africanos.
Nesta gigantesca obra de conquista e dominação que se
estendeu por mais de três séculos e meio, os reinóis
contaram não somente com o suporte da Corte portuguesa como também
com a chegada de diversas ordens religiosas (com destaque para a Companhia
de Jesus) que vieram missionadas para a catequese dos nativos e dos
escravos.
Como integrante da intelectualidade esquerdista que foi fortemente influenciada
pelo marxismo (Evolução Política do Brasil, de
Caio Prado Junior, de 1933) e pelo nacional-populismo (Getulismo, 1930-1954),
Darcy Ribeiro voltou-se para a denúncia da exploração
do Brasil Colônia e a sua continuidade no Império e República.
No topo, no mando de tudo, estava o patriciado formado por descendentes
de lusitanos (donos de terra, traficantes de escravos, comerciantes,
altos burocratas). Na base, uma multidão de miseráveis
ou semimiseráveis formada por negros, mestiços ou brancos
paupérrimos que "viviam por favor" nas bordas das propriedades.
A grande mácula do país, entre tantas mais, havia sido
a política de não integração da massa amestiçada
no processo de cidadania. O brasileiro pobre e racialmente miscigenado
passou a ter uma vida à margem do restante da sociedade urbana,
habitando malocas nas periferias, favelas no alto dos morros cariocas,
choupanas de palha em vilarejos miseráveis por todo interior
do país, situação que está longe, muito
longe de vir a ser atenuada algum dia. A chave para a explicação
da abismal desigualdade de classes no Brasil residia numa palavra: exploração.
A histórica: da metrópole sobre a colônia; e a social:
a do senhor sobre o escravo e, após a abolição,
da elite sobre o povo em geral.
Darcy entendia o processo de colonização praticamente
como um ato de depredação da natureza e rapinagem das
riquezas e dos nativos. "Desmontam morrarias incomensuráveis
(devastação da floresta atlântica e dos picos de
Minas Gerais). Erodem e arrasam terras sem conta. Gastam gente em milhões".
Nesta enorme operação destrutiva, em meio a intensas transformações,
apenas a classe dominante "permaneceu igual a si mesma exercendo
sua interminável hegemonia".
O destino do Brasil Colônia já havia sido traçado
de modo irrevogável três séculos antes pelo Padre
Antonil (Cultura e opulência do Brasil, 1711), determinando que
sua "vocação", por assim dizer, era exportar
seus produtos primários, principalmente aqueles forjados nos
engenhos, os quais ele detalhadamente estudou.
...
A Independência,
obtida em 1822, não significou a emancipação da
mão de obra escravizada espalhada pelos eitos, aldeias e cidades.
Ao contrário, o fluxo do tráfico negreiro se estendeu
ainda até 1850 (lei Eusébio de Queirós) e a manumissão
só foi alcançada em 13 de maio de 1888. Enquanto a Grã-Bretanha
tratava de ampliar a introdução do maquinário movido
por fornalhas a carvão, no Brasil queimava-se "carvão
humano" em "moinhos de gastar gente".
Escravidão e imigração
A exploração nefanda durou mais de 350 anos no Brasil,
provavelmente mais tempo do que durante o império romano, superando-o
em número de escravos e em área dedicada ao trabalho servil.
Neste sentido, o país foi o maior império escravista do
Mundo Ocidental em todos os tempos.
...
A chegada dos imigrantes europeus que vieram substituir os escravos
acentuou ainda mais a marginalização do "brasileiro",
isto é, a "gente parda". Daí Darcy Ribeiro,
sem desconsiderar sua importância, não se mostra um entusiasta
do translado dos "brancarrões" vindos da Europa, pois
eles aprofundavam o desinteresse pela massa mestiça, mais pobre
e mais abandonada.
As atenções governamentais do império e da república
se voltaram para atender as precisões dos recém-desembarcados
(subvenção de passagens, entrega de terras, ferramentais
e sementes etc.). As costas das autoridades voltaram-se ostensivamente
contra os seus.
O que é o brasileiro
O brasileiro de hoje é produto de três etnias que foram
gradativamente perdendo a identidade, afastando-se das suas raízes.
O nativo se desindianizou, o negro se desafricanizou e o branco se deseuropeurizou,
gestando o que ele denominou de PROTOCÉLULA ÉTNICA NEOBRASILEIRA.
Para Darcy Ribeiro, isto era um sinal evidente que neste subcontinente,
racial e culturalmente desbastado, apesar de tudo, se gestou um novo
tipo de civilização: a Civilização Tropical
Brasileira (que, segundo Gilberto Freyre, era o grande legado da colonização
lusitana), distante da cultura nativa aqui existente antes da conquista
e mais afastada ainda da civilização europeia, apesar
de importar sistematicamente tudo que surgia por lá. Como afirmou
Simon Bolívar em certa ocasião: "não somos
índios nem europeus".
Trata-se de algo singular, entre outras razões, porque é
uma civilização calcada na intensa miscigenação
das etnias. O país-nação em formação
é um caldeirão de raças que convivem em relativa
harmonia, mas está longe de ser uma "democracia racial"
como exaltou Gilberto Freyre. Ainda que exista preconceito por parte
dos brancos, jamais alcançou a violência do ódio
racial facilmente constatado na história dos Estados Unidos.
Todavia, esta "paz racial" bem pouco contribuiu para minimizar
o abismo social que aparta os ricos dos pobres, como qualquer levantamento
estatístico confere e a própria vista das cidades brasileiras
demonstra.
No momento de explicar quais motivos levaram o Brasil a empacar depois
de ter sido na época do açúcar e do ouro (1620-1820)
um dos maiores do mundo, enquanto a modesta América do Norte
tornava-se uma potência econômica e depois mundial, Darcy
Ribeiro reduz tudo ao fato de haver liberdade geral nos Estados Unidos,
ao menos depois da Guerra de Secessão (1861-1865), enquanto por
aqui se vivia sob o escravagismo, o que fez com que o país somasse
apenas 10% do PIB norte- americano no transcorrer do século 19.
Enquanto lá, usando a linguagem de hoje, difundia-se o empreendedorismo,
o que proporcionava que cada homem ou mulher - pelo menos entre os brancos
vindos em massa da Europa - tivesse a mais ampla autonomia para tocar
a sua vida e decidir seus negócios (rurais ou urbanos) por si
mesmos, no Brasil, tal situação era prerrogativa de poucos
- "os homens livres da ordem escravocrata" -, e geralmente
subordinada a serviço dos poderosos.
*Darcy
Ribeiro: O povo brasileiro - a formação e o sentido do Brasil
.....
Luiz Carlos
Martins
Presidente da Mesa Diretora do
1º Colegiado de Escritores Brasileiros, da Litteraria Academiae
Lima Barreto
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