Romilton Batista de Oliveira
Itabuna / BA

 

 

O pulo do gato numa noite escura


                     

Conta-se que moravam na Cidade Esquecimento a Sra. Bondade, o Sr. Amor ao Próximo e a Sra. Resistência. Eram amigos que moravam bem próximo da Cidade Movência, cidade esta que pertencia ao Distrito Desconstrução.
Desconstrução era habitada por homens e mulheres que tinham uma língua afiada. Lá nada passava fora do olhar crítico de Dona Desconstrução. Seus habitantes também tinham o direito de ir e vir, entrar e sair. Esquecimento e Desconstrução eram duas cidades unidas por laços de eterna amizade. Desde os tempos em que os tempos não se contavam cronologicamente…
Existia uma outra cidade que fazia parte do território Esquecimento conhecida como Mnemosyne, cidade esta que pertencia a um outro distrito daquele país que todos conheciam como Imaginação.
Imaginação era muito criativa, subjetiva e hospitaleira. Nela conviviam harmoniosamente muitos povos que falavam várias línguas. Não havia corrupção porque as pessoas eram instruídas, desde cedo, a compreender o maior sentido da vida: o respeito às diversidades culturais. Havia um homem cujo nome era Alteridade que tinha um importante papel: o de impedir que qualquer cidadão de Imaginação fosse contaminado por qualquer ideologia centralizadora, hegemônica e autoritária. Todos viviam unidos pela potência da leitura. Era o país da leitura, da consciência e do criticismo que produz à liberdade de expressão, desde que ficasse claro e definido, o lugar discursivo de quem detinha a voz.
Não era permitido nenhum tipo de violência, seja ela vinda de regimes totalitaristas ou de qualquer natureza destrutível que não colocasse no centro das atenções o ser do ser humano.
A cidade Esquecimento, pertencente à Imaginação, era sustentada por Bondade, Amor ao Próximo e Dona Resistência, mulher que nunca desistia de seus ideias, de suas conquistas e lutas. Bondade era mais singela, sempre exposta, disponível, amável e parceira de Amor ao Próximo que, sempre sensível e espiritualista, conseguia contagiar a todos com a sua forte presença integralizadora. Juntos conseguiram mudar a Cidade Esquecimento, mantendo-a constantemente vigiada por esses inseparáveis amigos. Lutavam constantemente para que nada fosse esquecido. Embora a cidade levasse o nome que faz parte da construção coletiva da Sra. Memória, prefeita eleita para conduzir os moradores de Esquecimento a seres sujeitos respeitáveis, dignos e socializantes, muita coisa vivia à margem da História.
Memória foi eleita por um conjunto de pessoas que habitam invisivelmente a grande e eterna Cidade Esquecimento. Seu papel maior era fazer com que ninguém, nenhum morador desta representável cidade, se entregasse à corrupção, ao negacionismo ou mesmo a ideias dissociadas do bem-comum.
A Cidade Esquecimento sofreu com a presentificação de uma outra amiga do trio-defensor da liberdade humana, conhecida como Dona Identidade, mulher que nunca deixava de escapar de seu espaço discursivo qualquer fato que viesse abalar a Cidade Esquecimento, pois todos naquele lugar se identificavam por meio de sua forma de ser e estar no mundo, apresentando-se como seres assujeitados a um “sistema circular”.
Morava, também, nesta cidade, uma amiga super carismática da Sra. Bondade, do Sr. Amor ao Próximo e da Sra. Resistência. Seu nome era Dona Representação. Sempre leal aos costumes e às tradições culturais de toda a população, está à disposição de alguns ajustes quando são necessários. Com a ajuda de Dona Heterogeneidade Cultural e da Sra. Movência, aprendeu, desde cedo, a aceitar que a vida é uma grande estrada a ser percorrida por homens e mulheres dispostos a atravessar a ponte do conhecimento, sem, necessariamente, dar o “pulo do gato”. O pulo do gato significa desobedecer o que é estabelecido pelas normas detentoras e defensoras da “paz”, na Grande Imaginação.
Um dia, alguém que não queria ser nada, que não queria se identificar, que não queria esquecer ou lembrar, que não queria se quantificar, que não queria ser representado nem apresentar-se, que não queria se ”encaixar” nem nos moldes da construção nem nos moldes da desconstrução, que não queria beber de nenhuma água movente, resolveu sair do “círculo”, e dar o primeiro “pulo do gato”.
Na terra da Imaginação, do Esquecimento e da Mnemosyne, um Sujeito Sem Nome resolveu seguir o seu próprio destino, resolveu não seguir nenhuma norma, resolveu ser andarilho, caminhar sem saber aonde seus passos irão se fixar, sem pensar no que está sendo ou será… Era o homem que cansou de habitar em cavernas humanas, aprisionado a estruturas ideológicas, lógicas ou cartesianas. Resolveu trazer para a luz do dia, as trevas que o homem não conseguia enxergar… Saiu pelas ruas a caminhar.
Todos o olhavam como o “diferente”, o “inominável”.
Na terra da Luz (ou da Imaginação), o Gato-Homem resolveu dar um salto especial, resolveu não mais caminhar segundo a sua própria vontade. Resolveu criar uma outra vontade que habitava a sua vontade, a contra-vontade, a potência da não-potência.
Conhecido como “o gato que pulou numa noite escura”, todos os moradores de Imaginação começaram também a segui-lo, só que não sabiam como fazê-lo, pois aquele homem, aquele “gato que pulou na escuridão” conseguiu dar o pulo que ninguém, em Imaginação, até o atual momento, ano de 2024, conseguiu dar.
Imaginação não conseguiu manter mais sua antiga calmaria e segurança, pois muitos tantos outros “outros” deixaram de ser outros, e há quem diga que este homem que conseguiu “dar um pulo numa noite escura”, habitou e continua a habitar a alma de tantos valentes que pela Imaginação foram e ainda continuam a ser tocados de forma tão extraordinária, que cabe aqui chamá-lo de “o Louco”, pois loucos são todos aqueles que como “gato selvagem” deixam marcas por onde passam… numa noite escura!




 


 




Conto publicado no livro: "O Pulo do Gato"- Edição 2021
Abril de 2022

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