Neri França Fornari Bocchese
Pato Branco / PR

 

O que alguns degraus podem fazer

 

Uma história com mais de setenta anos de vivência, repentinamente se vê ameaçada. O primeiro encontro foi na Serraria, em Sítio Alegre, próximo de Soledade, no Rio Grande do Sul, numa festa de igreja.
Duas meninas, entre tantas, com 3 anos de diferença na idade, brincavam de roda, de pega-pega. Era um tempo em que menina não brincava com guri.
Então, com um vestido novo, pois só ganhavam um por ano, e a festa era motivo especial. Vestido rodado, amarrado na cintura com uma faixa. Cabelo comprido, feito tranças e presas com fita rosa ou vermelha. De cor branca sujava muito e, menina não vestia azul.
A brincadeira de passar o anel. Uma do lado da outra com as mãos fechadas em concha. A criança que está com o anel também com as mãos em concha escolhe uma para deixar o anel. Por fim, aquela que é a adivinha, tenta descobrir com quem está o anel. Ser acertar torna-se a que vai passar. Se errar, aquela que ficou com o anel vai ser a próxima a passar e começa a brincadeira outra vez. Era uma diversão. Como quase ninguém tinha anel usava-se uma pedrinha. 
Eram as brincadeiras da época: roda pião, escravos de Jó, rosa juvenil, sapo cururu, o cravo e a rosa, ciranda-cirandinha e atirei o pau no gato. 
 Hoje, os tempos são outros, meninas e meninos brincam de roda, mas há quase um século atrás apenas meninos pequenos participavam. Isso por serem as irmãs mais velhas responsáveis por eles.
Quando a meninada cansava dessa brincadeira havia o chicote queimado,  brincadeira que trazia muita alegria. Uma varinha de maria-mole, para não machucar as amigas. 
Um objeto era escondido, enquanto isso as crianças ficam com o rosto virado para uma parede ou escondido entre as duas mãos. Quando é dada a ordem: Pronto! Todos saem a procurar. A que comanda a brincadeira vai dizendo: Está quente . . .   Está frio . . .  Está fervendo . . . A que encontrar o objeto vai comandar a brincadeira. Esse era uma das preferidas. Foi uma das brincadeiras trazidas pelos africanos.
A do ovo choco também era alegre e, envolvia a criançada.
Essa os meninos participavam com alegria. Disputavam, pois corriam mais rápido que elas. Quando os outros jogadores do grupo percebem que alguém recebeu o objeto indesejado, gritam: “Já fedeu, já fedeu, já fedeu!”.
O jogador que ganhou o ovo tem que correr atrás do ex-portador, antes que este complete uma volta inteira na roda e sente em seu lugar. 
A festa religiosa era um congraçamento. O pessoal das serrarias, que eram muitas, vinha todos. 
Como não tinha ainda um carinho de bebê para os passeios, as mães traziam uma coberta velha para colocar os pequeninos dormirem, no chão. Ou então num pelego e uma cobertinha para não dar alergia.
Um tempo bem diferente, porém, com toda a sua magia que marcou uma época, não tão distante assim.
 As mulheres que não tinham muitas oportunidades de encontros, conversavam o quanto podiam entre si. Compartilhando as amarguras ou as alegrias da vida, dependendo do modo em que cada uma enxergava a própria existência. 
Os homens jogavam baralho ou bocha e se divertiam. Todos cantavam as músicas italianas que seus pais ou avós, trouxeram da Itália.
No cair da tarde, as despedidas e a volta para casa. Cansados, mas felizes. As crianças, muitas choramingando, pois não aguentavam mais, queriam dormir. 
Se havia sobrado churrasco, esse ficava no espeto perto do fogo para não esfriar. Comiam com um pedaço de pão, depois de lavarem a mão em alguma bica de água. Às vezes ainda ganhavam uma gasosa.   
Voltavam a cavalo, de aranha, de carroça ou de caminhão, assim era feitos os passeios. Se era de caminhão, todos os da mesma Serraria vinham em cima da carroceria, sem perigo algum. Era quase sempre um caminhão de reboque, pois era o que puxava as toras do mato.
Chegando em casa, tanto era o cansaço físico principalmente das crianças que correram o dia todo, que até diziam porque fui na festa.
Se a mãe fosse amorosa, lavavam os pés e as mãos e, as crianças podiam ir dormir. 
Senão era preciso tomar banho, o que era complicado, pois o fogão a lenha precisava ser aceso, ainda esperar a água esquentar e só depois colocar no chuveiro de lata ou numa bacia grande e, então banhavam-se. Isso apesar do cansaço ajudava a recuperar as energias.
Ainda, as crianças que na época trabalhavam e muito, tinham que arrumar  o que era determinado e, muitas vezes lavar a louça do jantar ou a que  tinham trazido suja da festa. Arrastando o chinelo, com os pés doidos, só depois iriam para a cama quentinha. 
O encontro das duas meninas foi uma Maravilha, as amigas são como irmãs, até hoje, em 2020. Convivem. Passando esse contato para os filhos e os netos.
Depois dessa festa, novo encontro. Já um pouco mais crescidinhas em Xanxerê, Santa Catarina, e no Colégio La Salle, ao lado da Igreja Matriz, selaram a amizade, pois uma era interna e já morava em Pato Branco e a outra foi fazer o Exame de Admissão, veria em breve morar na mesma cidade.
Seria uma casualidade ou são os desígnios do Universo. 
Elas sempre louvam e bendizem ao destino que as presenteou com essa realidade.
Hoje, morando uma delas num prédio com mais de 50 degraus, está se tornando difícil para conversar, tomar chimarrão. As pernas estão cansadas.
O que o tempo não conseguiu separar, nem as andanças por três estados brasileiros, uma escada, está dificultando os encontros.
Foi uma vida, uma amizade bem vivida,  que agora já no meio da tarde da existência, essa escada, não seja ela, o motivo de separação de uma vivência de mais de 70 anos.

 

 


 




Conto publicado no "Livro de Ouro do Conto Brasileiro"
Edição Especial - Outubro de 2020

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