Letícia Alvarez Ucha
Porto Alegre / RS

 

 

A enfermeira

Estela olhava pela janela a chuva cair e só conseguia pensar em duas coisas: como estaria sua filha Mirela, asmática, e nos seus pacientes.
Já era tarde e ela ainda tinha que pegar o ônibus para atravessar a fronteira. Essa era sua rotina: acordava cedo, deixava sua filha com a vizinha e ia para a cidade de Pedro Juan Caballero no Paraguai, onde exercia a profissão de enfermeira.
A falta de medicamentos, EPIs para os profissionais agravava ainda mais a situação do ambiente hospitalar. 
Estela tratava os pacientes com uma atenção que muitas vezes nem os familiares deles tinham. Via sua profissão como uma missão de vida. 
Ela começou a trabalhar no lado paraguaio da fronteira com a intenção de poder controlar a atividades de Jorge, seu marido. Devido às financas,  começou a se envolver com drogas.
Mais um plantão encerrava-se. Foi para sua casa no lado brasileiro da fronteira. 
Foi ao mercado que fechava tarde. Surpresa ao constatar que mesmo com o horário avançado, havia filas enormes de pessoas estocando produtos.
Corredores antes amplos passaram a ficar estreitos diante do movimento!  Os clientes do mercado lotavam seus carrinhos com tudo que não fosse perecível.
Estela chegou a ficar tonta com tanta movimentação. Foi quando encontrou Liliana.
- Liliana, que bom encontrar você por aqui! Estranho movimento!
- Você, não sabe? Alguns países já estão fazendo isolamento e alguns até confinamento. – e foi saindo.
Chegando em casa, Mirela, sua filha de  quatro anos, já estava dormindo. Deixou os sapatos na entrada da porta, trocou de roupa, passou álcool gel.
 Sara, a vizinha que cuidava da criança, comentou com Estela sobre a movimentação das pessoas nos mercados que ela vira na tevê.
Sara aproximou-se e entregou uma carta digitada dizendo que um homem havia estado na casa dizendo que era uma mensagem de Jorge. Como ele não queria ser localizado nunca usava internet por causa do IP. Mandava seus comparsas entregarem recados digitados.
Estela não tinha o dinheiro que ele queria. 
Enquanto preparava seu lanche noturno, ligou a tevê para ver os noticiários. Na sua mente vinha a imagem dos idosos doentes do hospital que estavam havia dias sem receber visita ou ligação de parentes. 
Para distrair os pacientes, Estela costumava contar histórias, enquanto fazia curativos ou aplicava injeções.
Enquanto isso na tevê, passava notícias de que os números de mortos por coronavírus aumentavam de forma exponencial principalmente na Itália. Estela ficou com os olhos cheios de água quando viu depoimentos de enfermeiros que estavam vivendo aquele momento de dor.
O silêncio da casa foi quebrado por uma ligação. O celular apontou ser de telefone público.
Era Jorge querendo combinar que dia ele poderia ir buscar o dinheiro. Ela disse que não tinha e ele apenas disse que ela desse um jeito, caso contrário ele levaria Mirella com ele.
Chegando no hospital soube que alguns colegas haviam se contaminado com Covid 19, possivelmente no momento em que entuavam pacientes.
A filha de Estela, por ser asmática, estava no grupo de risco e por isso ela resolveu ficar em isolamento até fazer os testes para ver se havia contraído o vírus. Ligou e pediu que Sara ficasse em tempo integral. Assim as compras com farmácia e mercado passaram a ser feitas por tele-entrega.
Passaram-se alguns dias e Estela continuava em isolamento com sua colega Cassandra e só via a filha pelo whats. Ambas apresentaram febre leve e tosse, mas testaram negativo para a Covid19. Mesmo destino não teve Amanda outra colega  que apesar de jovem devido à complicações com sua obesidade veio a falecer. 
As filas do hospital começaram a crescer. O entra e sai de médicos e enfermeiros pelos corredores  aumentou.
Um dia pela manhã Estela recebe uma ligação. Era Sara avisando que Mirela tinha tido um ataque de asma .
Estela ficou sem chão. Pediu que a amiga levasse sua filha ao hospital.
Quando foi atravessar a fronteira, Estela foi surpreendida com a notícia de que o Paraguai havia fechado as fronteiras com o Brasil. Ficou desesperada, implorou mas não houve jeito.
Saiu caminhando sem rumo e foi quando passou por um posto de gasolina e havia um caminhão de carga abastecendo. Viu que o motorista conversava  com o frentista e não teve dúvidas: subiu no caminhão escondendo-se  na boleia. 
Quando o motorista entrou no caminhão, pensou em expulsar Estela, mas reconheceu seu rosto. Ela foi a enfermeira que havia cuidado de sua mãe. 
Chegando no lado brasileiro da fronteira, foi até ao hospital e nada da filha. Ninguém havia se internado com esse nome. Ligou para Sara que não atendeu.
Correu para sua casa. Chegando lá, avista Jorge que está com a filha com falta de ar sem dar o medicamento.
Pergunta por Sara, e ele responde que a mandou embora. Jorge exige o dinheiro sem se importar com o mal-estar da filha.
Estela diz que não tem o dinheiro e ele lhe dá um soco que a atira do outro lado da sala. A criança ao ver isso começa a chorar e  a gritar . Vizinhos ouvem os gritos e chamam a polícia que chega e prende-o em flagrante.
Estela prestou socorro à filha dando o remédio para a asma, Com a fronteira fechada, não teve como retornar ao trabalho.
A quarentena no Brasil tinha começado há alguns dias. Lojas fechadas, ruas vazias. Um misto de angústia e tristeza diante de tantas incertezas.
Dias iguais e sem perspectivas. Estela continuava sem poder ir ao trabalho, pois a fronteira continuava  fechada pelo Paraguai.
De repente, o silêncio da rua foi interrompido por uma freada: Estela viu uma senhora caída atropelada. Correu para prestar socorro. O motorista do carro, diretor de um hospital da região, alegou que a senhora não parou quando o viu.
Estela prestou os primeiros socorros. O gestor ficou impressionado com a forma que ela tratou a senhora atropelada. Ela explicou que era enfermeira e que estava à procura de emprego. Ele,  necessitando de novos profissionais, convidou para fazer parte da equipe do hospital cuja demanda aumentara com a Covid19. Feliz, ela aceitou.

 

 

 

 


 




Conto publicado no "Livro de Ouro do Conto Brasileiro"
Edição Especial - Outubro de 2020

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