Fernando Magaldi
Belo Horizonte / MG

 

 

Impressão do voto



        

Anos 1960. Zuruó,, uma cidade perdida entre as montanhas das Minas e os confins das Gerais, vivia em efervescência. Apesar da camisa de força política imposta pela ditatura, a eleição local não deixava de ser o fato, e, afinal, mais do que nunca o adágio mineiro – no municipá nóis briga, no estaduá nóis diverge, mais no federale nóis apoia – estava vivo nas Arenas um, dois e três, artifício instituído para criar o “maior partido do Ocidente”.
No dia do pleito, eleitor de um lado não conversava com o do outro. Não havia institutos de pesquisas, mas cada grupo fazia a sua contagem de votos pelo conhecimento das famílias. Sabiam até quem poderia “trair”. A diferença ficava por conta do eleitores arrebanhados em outras cidades e que chegavam, já com as urnas abertas, em carros ou ônibus trazidos por um e outro lados.
A guerra municipal quase sempre não tinha final feliz. Desavenças, brigas, agressões verbais ou de fato não podiam faltar. Também não eram raros os ataques com arma de fogo ou branca, que acabavam deixando vítimas e ressentimentos duradouros. Por vezes, até defuntos saíam da tumba para cumprir seu sagrado dever de votar. Para muitos, o voto era uma mercadoria qualquer. Levava quem dava ou prometia mais.
Nas eleições anteriores, após muito tempo de luta e espera, a oposição pessedista conseguira vencer os udenistas. Mas, sem a reeleição, apesar dos avanços alcançados, a disputa seria apertada. Noite e dia, um e outro lados faziam e refaziam os cálculos, escolhiam os fiscais eleitorais que tinham maior preocupação em acompanhar seu homônimo do que o desenvolvimento dos trabalhos de coletar votos.
Fechadas as urnas de lona era outro ritual. Com medo de haver alguma alteração na vontade popular, um e outro lado faziam caravanas até a sede da comarca, escoltando as urnas e vigiando os responsáveis pela guarda das mesmas. Como primeiro eram contados os votos da cidade sede e depois das demais, faziam guarda no fórum até que o juiz determinasse o início da contagem.
Enfim, chegou a hora da criança nascer. Voto a voto, urna a urna, os dois candidatos vão se alternando na liderança. Eleição indefinida. Chega a última urna. Um e outro lado ansiosos. Contam o número de votos que conferem com a ata. Separam os votos de cada candidato, os brancos e nulos. Momentos de ansiedade. Amontoados na pequena sala, os “inimigos” não exibem armas. Em suas feições se estampa o ar carrancudo da preocupação.
O juiz proclama o resultado e, ato contínuo, determina a entrada das urnas de outro município. Gritos de alegria, raiva e decepção enchem a pequena sala do Fórum. Os vencedores se abraçam, sem saber se choram, se riem. Esquecem as cédulas, os adversários. Os perdedores procuram se bater em retirada, carregando a mágoa da traição. Com o pé do ouvido colado no rádio de pilhas, a população de Zuruó perdeu a última contagem. A onda da rádio que transmitia a apuração se perdera.
De repente, um aliado político dos perdedores grita pedindo a recontagem de votos da urna sete. “Nosso fiscal fez uma contagem diferente, meritíssimo. Vamos recontar”.
Batendo o martelo sobre a mesa, a custo o Meritíssimo consegue fazer silêncio e anuncia a recontagem dos votos da urna sete. O aliado dos perdedores ostenta um sorriso de vencedor. Os aliados dos até então vencedores tentam contestar. Em vão. A decisão judicial está tomada.
Separam-se os votos de cada candidato, os em brancos e os nulos. Conta-se primeiro estes. O mesmo número da primeira contagem. Alivio de um lado, incerteza do outro.  Em seguida, confere os votos em branco. Dois menos que na primeira contagem. O responsável pela apuração deles confere mais uma vez. “Falhamos na primeira contagem”, sentencia se penitenciando.
Vai-se para o bloco do até então vencedor. Nenhuma diferença. O mesmo número. Alívio. Sorrisos tímidos. O aliado dos até então perdedores, de pé em frente aos conferentes, continua com seu sorriso entre enigmático e sarcástico. Poucos reparam nele. O servidor da Justiça Eleitoral sentencia: confere o número de votos.
Agora, conta-se os votos do candidato inicialmente derrotado. O encarregado da recontagem, pega o mapa manuscrito. Confere. Reconta as cédulas uma, duas vezes. Não tem dúvidas. “Meritíssimo, contei dois votos a mais que na primeira contagem”.
O juiz proclama o resultado.  O placar se inverteu. Pela mesma diferença, o perdedor agora é, na realidade, o vencedor.
Aquele aliado, como num campo de futebol, esmurra o ar como a comemorar um gol de título. Os agora perdedores reclamam de fraude. Recorrem. Mas está tudo ali, nas cédulas de papel.  Não adianta reclamar.
A frequência da rádio não retorna. Sem notícias, Zuruó está preocupada. São minutos que parecem dias de tensão, temor e ansiedade. A funcionária do Posto Telefônico grita eufórica. Então, metade sabe que não vai dormir de alegria. Outra metade não vai dormir por causa dos foguetes e bombas. Na tristeza pela derrota com gol de mão do adversário, vê não ter como recorrer. Ainda não existia o VAR...

 

 





Conto publicado no "Livro de Ouro Contos "- Edição 2021 - Outubro de 2021

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