Jonatas Rubens Tavares
São Francisco do Sul / SC

 

 

 

Zé Frigideira



        

Quando eu conto, pouca gente acredita, mas nós já tivemos o nosso herói, com direito a máscara, capa e tudo o mais. A trajetória super-heroica de Zé Frigideira começou quando sua mãe, dona Cláudia, foi assaltada enquanto aguardava o coletivo. João (Joca) da Silva decidiu-se:
-Agora chega!
Estava farto dos crimes, do medo, a população presa, a bandidada solta. Não era adepto do “bandido bom é bandido morto”, mas se os representantes oficiais do povo nada faziam, ele o faria!
Na borracharia em que trabalhava, João passou a malhar escondido, adaptando pneus (pesos) a uma barra improvisada. E pegou pesado no treinamento.
-Ô Joca, tu tá legal? – perguntavam alguns.
-O chassi de grilo anda com um baita ar de acabado – comentavam outros.
Quando sentiu-se pronto, João recortou uma camiseta velha de campanha política; assim surgia a sua máscara. Um lençol surrado, atado ao pescoço, desceu-lhe os ombros estreitos; era essa a sua capa. Trajado com uma velha calça jeans e uma camisa manga longa desbotada, tomou duas grandes frigideiras: uma amarrou sobre o peito raquítico, a outra às costas recurvadas. Outras tantas frigideiras, menores, todas amassadas, lhe recobriram a barriga seca, os ombros, braços e pernas. Assim surgia a armadura do nosso herói, composta por utensílios que Joca conseguira certa vez ajudando o tio na Kombi do troca-troca.
-Parados! Eu sou o vingador! – apresentou-se o mascarado, quando topou, em uma noite escura, com trombadinhas depredando o bem público.
-Ih, relaxa, ô da frigideira! – um dos jovens foi explicando – a gente tá aqui fazendo arte, se expressando, saca?
-Arte? – o nosso herói passou a vista em volta, observando a destruição promovida pelos rapazes.
-Claro! Estamos exteriorizando toda a nossa ira para com essa sociedade injusta, maluco!
Como de certa forma os entendesse, partiu dali, mas não antes de repreendê-los:
-Não façam isso de novo!
-Valeu, Zé Frigideira! – acenou a rapaziada, cunhando o apelido que substituiria o até então idealizado “vingador”.
Na segunda missão, o nosso herói mascarado flagrou um ladrão de residências. Como não tivesse dúvidas quanto ao crime perpetrado, Zé retirou uma das componentes de sua “armadura” e saiu distribuindo frigideiradas.
-Calma aí, mermão! Calma aí! – o larápio jogou-se no chão, encolhido, de modo a proteger-se das bordoadas.
-Calma? Devia ter pensado nisso antes! – exclamou o mascarado, ameaçando atingir o ladrão uma vez mais.
-Tanto peixe grande por aí, ladrão de terno e gravata roubando milhões do povo, e tu vem espancar bagrinho pequeno como eu, que não passo de mais uma vítima social da corrupção institucionalizada que permeia a nossa sociedade?
Como em certo ponto concordasse com o sujeito, Zé Frigideira permitiu que o ladrão partisse com as mãos abanando, mas não antes de ameaçar:
-Não quero te ver invadindo residências novamente!
E assim foi seguindo a carreira desse verdadeiro herói brasileiro, trabalho duro o dia inteiro, estômago vazio, nenhum tostão no bolso, sede noturna de combate ao crime, poucas horas de sono. E quando o criminoso flagrado não apelava ao calcanhar de Aquiles de Joca (o sentimentalismo), Zé até que distribuía boas frigideiradas, entregando, amarrados, olhos roxos, os bandidos na porta da delegacia. Numa dessas, foi abordado por um grupo de policiais visivelmente preocupados.
-Frigideira, somos fãs do teu trabalho...
O nosso herói começava a se emocionar quando foi acrescentado:
-... Mas a tua ação tem complicado as coisas pro nosso lado.
-Como isso? – Joca quase deixou a máscara cair.
-Nós temos sido acusados de fazer vista grossa a justiceiro – completou outro PM.
-Puxa vida, pessoal, me desculpem, eu não queria...
-Não estamos te pedido pra parar, Zé, mas pega leve, age mais na moita, frita a bandidada em fogo baixo.
Como os respeitasse, Joca atendeu ao pedido dos policiais:
-Fiquem tranquilos, senhores, que agora vamos na surdina.
Acontece que a partir desse ponto a vida de Zé Frigideira foi ficando mais difícil; os bandidos não atendiam à sua voz de prisão: ou fugiam dando risadas ou espancavam o nosso herói que, sem o elemento surpresa, não era lá uma grande ameaça física.
Na TV a campanha contra Zé Frigideira era forte: era preciso que os governantes fizessem algo contra aquele “fora da lei travestido de super-herói”.
-Está tudo errado mesmo – opinou dona Cláudia enquanto assistia ao telejornal.
-Como assim? – Joca indagou – Ele pode estar fazendo isso por gente como a gente, mãe – defendeu-se.
-Esse homem não tem autoridade legal pra fazer isso – opinou a senhora – Por que ele não ajuda as pessoas de outra forma? Nós, por exemplo, estamos precisando de alguém pra subir na laje acertar a posição da antena da TV.
-Deixa que eu faço isso pra senhora, mãe...
Naquela noite Zé Frigideira ganhou a rua cabisbaixo, a “capa” arrastando pelo chão. Numa dessas, topou com um sujeito assediando uma moça. Louco para extravasar toda a sua frustração, o nosso herói, frigideira em punhos, saltou em direção ao criminoso. Para a surpresa de Zé, a vítima interpôs-se entre ele o bandido:
-Calma lá, cidadão, que esse homem tem direitos!
-E os seus, como ficam? – quis saber o mascarado.
-Dos meus direitos cuido eu, que sou advogada – e voltou-se para o assediador – o senhor se sentiu lesado por esse justiceiro? – retirou um cartão da bolsa e o entregou ao homem – se quiser, podemos buscar justiça...
Como nada mais entendesse, Frigideira tomou o rumo de casa.
...
Quando eu conto, pouca gente acredita, mas nós já tivemos o nosso herói. Hoje, no entanto, ele atua no anonimato: desprovido de seu “uniforme”, agora Joca resgata gatinhos de árvores e ajuda velinhas a atravessarem as ruas. Às vezes ele sofre ao pensar no quanto o seu alter ego mascarado deve fazer falta às pessoas e no quanto ele seria lembrado.
-Já foi tarde aquele maluco que saía deitando frigideira em bandido! – discutiam pelos bares quando do desaparecimento de Frigideira.
-Quem era esse?
As frigideiras? Bem, essas ao menos serviam para fritar ovos.

 





Conto publicado no "Livro de Ouro Contos "- Edição 2021 - Outubro de 2021

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