Rozelene Furtado de Lima
Teresópolis / RJ

 

 

 

O marceneiro



        

       Manter a arrumação de uma casa é uma configuração de projetos, parece fácil, mas é uma das tarefas mais difíceis e pouquíssimo valorizada. Vou usar como exemplo a cozinha. Quantas vezes vi armários de cozinha com uma profundidade enorme. Coloca-se uma coisa qualquer e conforme são armazenados os utensílios, muitas coisas e coisinhas ficam perdidas no fundo.  Encontrá-las é como desconstruir uma lenda.  Tenho uns vidros de suplemento alimentar que uso todos os dias. Certo dia, quando fui tomar minhas vitaminas o pote não estava no lugar. Pensei com meu fecho éclair: devo ter trocado de lugar. Comprei outro pote e esse sumiu também. É...  o tempo está passando e a minha memória falhando. Comprei outro e guardei no quarto, dificuldades estavam encerradas? Não, não estavam...  Ao fazer limpeza no espaço gourmet e com certeza nos armários, os potes estavam lá no fundo com data de validade vencida, todos foram para a lixeira.  
        Procrastinar com decisões sem buscar uma solução é ignorância ao quadrado vezes tempo precioso perdido. 
        Contratei um marceneiro, que foi muito bem indicado. Ele veio, expliquei que queria uma prateleira comprida e estreita, mostrei o local, ele tirou as medidas e disse que ficaria pronta em uns três dias. Passado o tempo marcado ele não apareceu, então liguei perguntando. 
- Vou precisar de mais quatro dias, estou trabalhando direto na sua prateleira. Agradeci  e aguardei. 
        Uma prateleira estreita e aberta na cozinha, só é funcional se for para colocar objetos de pouca duração, onde há troca constante, por causa da gordura.  Caixas de chá, vidros de remédio, etc... 
       O marceneiro chegou trazendo um objeto coberto por um pano. Se deixar eu trabalhar sozinho me sentirei mais a vontade, quando estiver pronto eu chamo a senhora.  - Pedante ou mal educado? Pouco importa desde que fique pronta a prateleira, está tudo bem. Deixei-o em paz com seu trabalho, afinal era só uma simples prateleira. Passado umas duas horas ele me chamou. A peça estava no lugar, mas com o pano por cima. Fi
quei intrigada. Ele com uma cara emocionada relatou: - Eu sei que a senhora é uma artista plástica, não poderia fazer um serviço mal feito, procurei fazer uma obra bem caprichada. Eu fiquei mais intrigada ainda. Ele segurou a ponta do pano e com uma expressão no rosto de muita emoção, quase choro. Lembrou-me uma grande inauguração. 
          - Eu fiz o melhor que pude e vou cobrar só o meu trabalho e o material que usei.  
        - Mas o que a mais foi gasto? Perguntei intrigadissíssima...Ele continuou: - a criatividade artística não tem valor, mas como eu estou honrado por trabalhar por tão importante pessoa e a minha obra ficará exposta na sua cozinha,  em exposição para sempre, estou muito orgulhoso e recompensado. E cuidadosamente foi puxando o pano, faltando só os tambores rufando. Finalmente mostrou a prateleira. Eu desintrigada e maravilhada. Uma verdadeira obra de arte. Uma prateleira emoldurada. A moldura toda com entalhes em arabescos com veios finíssimos pintados com um fio dourado nos entremeios. Ele explicou: - toda feita em mogno especialmente para a senhora. 
        Como qualquer vivente, fiquei sem palavras diante de arte tão primorosa, tão exclusiva, tão pessoal feita com tanto carinho. Agradeci. Ele apresentou a nota, paguei, ele saiu, então chorei. 
        Os potes de remédios e os eteceteras continuaram no armário, para  aquela prateleira fiz um quadro que representasse a grandiosidade daquele coração marceneiro. Como ele profetizou, é uma exposição permanente com muitas visitas. 
        Tem por aí muitos anjos professores espalhados a nos darem aulas gratuitamente. Tenho procurado reconhecer estes professores, aprender e estou cada vez mais agradecida. Entre todas as profissões encontramos grandes artistas. 
        Fui visitar o Museu Imperial em Petrópolis. Se você ainda não foi, vá. Todos os móveis são maravilhosamente trabalhados. Os quadros têm molduras esplêndidas, a tendência é olhar o quadro, mas poucos detêm o olhar nos entalhes das molduras. E então pensei: - Quais foram os artistas que fizeram estas obras, que entalharam estas madeiras, com trabalhos tão artísticos e ficaram anônimos. Por que alguns não conseguem fazer sucesso com seus talentos, se escondem ou não são reconhecidos como tal? Ou não sabem que têm capacidades valiosas? 
A beleza da arte está na forma como ela consegue produzir emoções em quem a olha. 
  





Conto publicado no "Livro de Ouro Contos "- Edição 2021 - Outubro de 2021

Visitei a Antologia on line da CBJE e estou recomendando a você.
Anote camarabrasileira.com.br/ouroc21-007.html e recomende aos amigos