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Renato Dutra
Taubaté / SP

 

A história de um demônio

- Não vamos conseguir.
- Não blasfeme. Em nome de Deus.
O exorcismo durava mais de dez horas e o espírito estava encurralado naquele cômodo.
- Aqui padre, sua bolsa - o padre mais novo jogou a bolsa ao outro. Uma cama flutuava entre eles.
- Eu te conjuro em nome do Pai, do Filho e - duas mãos esqueléticas materializaram-se ao redor do pescoço do padre - do Espírito Santo - proferindo essas palavras, Padre Aguilar tirou de sua bolsa um velho crucifixo de madeira e o empunhou em direção à besta.
Todos os móveis que se encontravam ali começaram a flutuar e a rodar pelo quarto. Uma cômoda acertou em cheio padre Freitas que caiu de bruços no chão. Ele apenas pode se proteger com as mãos dos objetos que caiam pesadamente ao chão.
- Vá embora. Aqui não é seu lugar. Encontre a luz - Berrou Padre Aguilar encostando o crucifixo na cara da besta - Deus não nos fez para o sofrimento. Liberte-se em nome de Deus!
A criatura abriu sua boca num ângulo sobre-humano e, antes que pudesse engolir a cabeça do padre, foi tomada por um choquee soltou o pescoço do padre que deu um passo para trás. Mesmo com as luzes desligadas, a lâmpada oscilou uma, duas, três vezes, antes e estourou. Uma luz começou a escapar de dentro da monstruosidade que começou a derreter. A criatura inumana foi se desmaterializando, camada por camada, até chegar a uma forma humana de um homem. Essa última imagem encheu-se de luz e desmaterializou-se. Depois disso, tudo o que se ouviu naquele recinto foi o som silêncio e na mais completa escuridão.
Mais tarde, na igreja, Padre Aguilar fazia suas orações. Foi surpreendido por seu companheiro de exorcismo.
- Posso me juntar ao senhor nas orações?
- Pode, oremos juntos. Nossa tarefa hoje foi difícil; mas, com a ajuda de Deus, alcançamos nossos objetivos.
- Aquela família vinha sofrendo há tempos com aquele demônio. Eu não conseguiria sem sua ajuda. Aquela família deve a vida ao senhor.
- Não, Aquela família deve a gloria de hoje a Deus. Ele foi o grande salvador. Nós fomos instrumentos de sua vontade. Mas há outro ponto no qual você se engana.
- Em que meu bom amigo? Em que eu me engano?
- Em quem foi realmente ajudado hoje. A família foi ajudada; mas, quem mais foi ajudado foi o espírito errante que libertamos em nosso exorcismo.
- Quem mais se beneficiou foi aquele demônio?
- Sim. Ele conseguiu sair da areia movediça de trevas na qual se encontrava e alçou o caminho de luz que o levará ao Nosso Senhor.
- Não entendo.
- Não se culpe. É uma longa história, começada há muito tempo.
- Me conte tudo.
- Cada coisa ao seu tempo. Termine suas orações e vá descansar. O dia foi cansativo. Amanhã conversamos.
Na manhã seguinte, padre Freitas esperou seu companheiro que não apareceu para o café.
Preocupado, padre Freitas foi até a cela em que seu amigo dormira e achou-a completamente arrumada. Padre Aguilar fora requisitado em outra comunidade. Porém, deixou em cima da cama um bilhete com o relato que mudaria o modo de enxergar o mundo de padre Freitas.
“Caro amigo, fui chamado para outro caso. Não pude ficar e contar os fatos que se desencadearam até culminar no exorcismo que realizamos. Mas, deixo esse relato do que aconteceu até o desfecho que conhecemos.
‘Eu era o jovem padre dessa comunidade que você preside hoje e presenciei o drama da família que construiu a casa na qual fizemos o serviço do Senhor no dia de ontem.
Os donos da casa formavam um belo casal e foram presenteados com a chegada de uma criança que encheu a casa de alegrias. Tudo correu bem pelos primeiros cinco anos de vida da criança.
Tudo melhorava. A mãe vivia feliz. O filho crescia saudável e o pai foi promovido e recebeu um aumento salarial, responsável por propiciar comprasse seu primeiro carro zero.
Para comemorar, fizeram uma festa de aniversário para seu filho.
A festa foi um sucesso. Todos se divertiram. Depois que todos os convidados se foram, o filho estava eufórico para mostrar todos os seus presentes ao seu pai. Mas, na visão da criança, o maior presente seria ele que daria ao seu pai. “Vem papai, vem ver o que eu aprendi com a tia na escola” e pegando o pai pela mão, levou-o até a garagem onde repousava o carro recém-comprado.
A ira tomou conta do pai que viu escrito com uma tampinha de garrafa o nome de seu filho na lateral do carro novo.Sem pensar, o pai bateu nas mãos do filho com toda a sua força até suas próprias mãos doerem. O garoto, sem entender por que apanhara, foi, aos soluços, para o seu quarto.
Na manhã seguinte, os pais encontraram o filho na cama chorando. Suas mãos estavam roxas. Colocaram o filho no carro riscado e o levaram para o hospital.
‘Não teve como fazer nada. No estado que as mãos da criança estavam, nossa única escolha foi a amputação. Sei que é uma situação ruim; mas tentem ver pelo lado bom, se a estante tivesse caído meio metro para trás, hoje vocês estariam enterrando seu filho’, disse o médico.
A família nunca mais foi a mesma. A mãe sabia que não tinha sido uma estante que fizera aquilo. Ela vira a lateral riscada do carro e entendeu tudo.
O remorso comia o pai. Nunca mais ele sorriu. Os longos e animados diálogos entre marido e mulher agora não passavam de monossílabos guturais.
A criança adaptava-se sem as mãos. Não guardara raiva e sentia-se culpado por ter riscado o carro.Imaginava que a tristeza na casa era por causa disso.
Um dia, o filho observou o pai sentado cabisbaixo na mesa do café e então lhe disse: ‘Papai, devolve minhas mãozinhas, eu prometo que nunca mais risco o seu carro novo’. O pai levantou-se, abraçou fortemente o filho e subiu, trancando-se no quarto. Minutos depois, todos ouviram o tiro que tirou a vida do corpo físico do pai daquela família, mas que foi incapaz de suprimir seu sofrimento.
O demônio que enfrentamos ontem, era um espírito perdido pelo remorso e pela raiva que, inconscientemente, assombrava a casa na qual viveu e morreu.”
Terminada a leitura, padre Freitas meditou “Essa é nossa função, servir de guia e lanterna para todos os espíritos em direção à luz”.

 

 
 
Conto publicado no livro Quem vai pegar o morto?" - Fevereiro de 2016