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Maria José Zanini Tauil
Rio de Janeiro / RJ

 

Quem vai pegar o morto?

     Essa será  a última partida no jogo da nossa vida. Deixemos as cartas espalhadas sobre a mesa. Elas podem esperar... nós, não.
Nossa vida sempre foi um jogo perigoso,  um desejo passional e egoísta do prazer pelo  prazer, o deixar-se dominar pela paixão,  por longos  invernos e verões. Só, meu caro, que  o tempo também despe coisas, despiu horas, dias, anos.
Deixei de policiar  o coração, repleto de desenganos, mas a dor mais profunda ainda vem daquele amor tão enferrujadoque nutri por ti... a vida inteira.
Por toda a vida,  pisaste  no vidro da minha sensibilidade que, estilhaçada,  ainda arde de dor , enchendo  o meu olhar de solidão, talvez calejado de tanto se  expor. Nas flamejantes gotas de um passado que se faz presente, ainda me alimento.
 A memória continua sendo  minha  companheira de silêncio,  trazendo para o meu hoje a minha carne misturada em tua carne.
Foi tanto o que falei contigo, foi tanto o que falei de ti... e no entanto,  sei tão pouco! Resta  só um combate a ser travado, pouco chão a ser pisado. Quanto pranto, em meu rosto  ressecado!
Mas o sangue ainda espera, nas veias mais sofridas do meu corpo, que ainda é teu nesse momento.Na alma em desassossego, aninham-se  espumas de nostalgia. Em mim, náufraga em oceano de sombras, muitas vezes, a noite entornava avalanches de trevas, escorrendo sobre colinas, inundando caminhos que um dia,  nos viram latejando felicidade,  com desejos saciados, rumo à aurora, sem fim e sem começo...
 Por ti e para ti,  vivi a morte em vida. Esforço-me por acolher sem espanto, sem cólera, tudo que a vida me ofereceu. Sim, essa será, com certeza, nossa última partida. Que as cartas aí, jogadas sobre a mesa, nos esperem mais um pouco.
Jamais indagarei a Deus qual foi o motivo da minha misteriosa estada nesse mundo.  Mais dia, menos dia, a brisa desfolha a rosa. Um dia de lágrima, prepara outro de alegria . Não me abandona nunca esse  mágico incrível, que tem o cordão que me manipulará e conduzirá à doce terra do esquecimento.

Dentre amargas esperanças acorrentadas,  esqueço que  em outras jogadas em que venci, não logrei a recompensa, que sei, mereci. Não lamento nada, não espero nada. Tudo que acontecerá, está escrito naquele livro imenso que o vento da eternidade folheia ao acaso. As antigas horas de extáticas contemplações são sempre lembradas, mesmo se os olhos não veem, pois o pensamento consegue voar, nas  formas, nas cores e nas luzes do caleidoscópio que foi a nossa vida.

 O coração sente,  a cabeça fantasia utopias e as asas brotam em mim. O corpo flutua e percebe   a beleza de ver e sentir além. Será meu grande e derradeiro voo.

Acho que já disse tudo, mas creio que, como sempre,  não entendeste nada. Era meu propósito deixar incógnitas para que decifres. Vem, toma meu corpo agora.  Essa é nossa última viagem, nossa inesquecível noite. Ali na mesa , as cartas nos esperam para a última partida, onde, certamente,  pegarás o morto,farás muitas  canastras, baterás o jogo.

 Levarei tudo o que me pertence, mas te deixo o baralho. Acho que, em cada carta, encontrarás  a resposta para  os teus inúteis questionamentos. Só lembra  que  uma dama fica sempre  entre  um  rei e um valete.


 

 
 
Conto publicado no livro Quem vai pegar o morto?" - Fevereiro de 2016