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Rita Lucia de Lucas Tré Becker
Petrópolis / RJ

O Saci-pererê do asfalto

        

Rua São Francisco Xavier, Maracanã, lá veio ele, pretinho, peladinho; em meio ao povo, no ponto de ônibus, ele surgiu.
Pensei ser um devaneio, pois minha mente se encontrava lotada de informações. Vinha de um Fórum de Estudos Linguísticos, impregnada de exposições marcantes e considerações enfáticas sobre como observar, como estudar, como ensinar a nossa língua portuguesa.
Parado, com o braço esquerdo encostado em uma grossa árvore, ficou. Fazia gestos com o braço direito, sorria, assustava as pessoas que de perto dele saíram; tinha um rosto simpático, até bonitinho, meio sapecas eram seus olhos que rapidamente se mexiam, assim, de um lado para outro.
Parecia mesmo ter saído de algum livro de Monteiro Lobato direto para a civilização moderna, bem folclórico, único em sua característica mítica; levou-me a procurar alguma mula sem cabeça ou um curupira.
Na calçada havia pessoas certamente semelhantes a esses. Suas posturas e atitudes assemelhavam-se a coisas de outro mundo, que sequer conheço, a não ser em folclores ou histórias de terror. Mas a imaginação é fértil e busca a toda hora, inconscientemente, os arquétipos, de forma que todos nós temos em nossa mente um modelo de “coisa de outro mundo”. Cheguei a ver seres estranhos: uma mulher segurando sua cria como em bolsas de canguru, um senhor estranho e tarado, pois mexia com todas as mulheres que passavam, outros com a camisa toda aberta e sujos como o lixo que estava na rua. O saci a tudo observava; brincava com os carros, ficava na beira da calçada arriscando a vida; à maneira de quando veio da floresta, sumia, aparecia; algumas vezes ria bem alto. Eu não deixava que me pegasse olhando para ele, sabe lá, de repente sumia comigo ou desaparecia com minha bolsa ou meu relógio, do mesmo modo que escondia os pertences dos cavaleiros das estradas.
Quieta fiquei e observava, de longe, em longe; e observando assim percebi que não tinha cachimbo - poderia ser uma versão atualizada -; não usava gorro vermelho - talvez o calor do Rio de Janeiro -; quando, por fim, assustadoramente, percebi: ele tinha as duas pernas. Meu Deus! Quão tola e sonhadora fui, reportei-me à infância dos homens, pensei estar vivendo a magia das literaturas, mas não, o menino era um pivete que tomado pelo efeito da cola (do cheiro da cola) estava pelado na rua, desrespeitando as regras do bem viver; as feições engraçadas, que por um tempo me prenderam a atenção, e seus olhos insistentemente dilatados e aceleradamente móveis também eram frutos do vício destruidor.
Logo, agradeci a minha memória por lembrar da história do saci-pererê e, por motivos outros, ter me preocupado com a bolsa.
Nossa! A cabeça vai aonde o corpo jamais acompanha. No meu caso, que vivi uma história fantasiosa de momento, e o menino delinquente, em sua viagem pelas drogas, também saiu de sua realidade, que é bem mais dura que a minha...

 

 

 
 
Conto publicado no livro "Quem vai pegar o morto?" - Fevereiro de 2016