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Rozelene Furtado de Lima
Teresópolis / RJ

 

Ninguém quer pegar o morto

       Bons tempos em que “jogar buraco” era uma diversão constante para passar horas de lazer e reunir pessoas, rodadas de cafezinho e pastéis, de caipirinha e casquinha de siri, de cervejinha e petiscos e tudo sem celular. E tinha os códigos entre parceiros para pegar a carta para fechar a canastra, para bater e decidir quem da dupla pegaria o morto.  E também as discussões da carta na manga ou debaixo da perna, tudo transcorria na saudável brincadeira. Nós tínhamos uma vez por ano o troféu da dupla vencedora. Bom demais!     
            De tanto escrever e de participar de concursos literários e de aceitar convites, surpreendentemente recebi uma indicação para receber  o Prêmio Destaque Artístico Cultural da Sociedade Europeia de Belas Artes na Áustria por divulgar a literatura brasileira no Brasil em outros países. Horas de choro alegre e de contentamento! Que bênção!       
          A organização do Prêmio preparou a viagem nos mínimos detalhes para os homenageados escritores e artistas plásticos brasileiros. Visita a seis países:  Alemanha, Áustria, Checoslováquia, Eslováquia, Itália e Portugal. Eu não conseguia dormir pensando na preparação para viagem, na honraria do Prêmio que começaria pela Feira Internacional do Livro em Frankfurt com lançamento do meu último livro, de visitar o Castelo da Sissi a Imperatriz, na premiação com jantar de gala no Castelo de Koblenz, conhecer a belíssima Praga, ver e sentir as arquitetônicas igrejas e catedrais, castelos em Bratislava, ir ao Vaticano, ao Coliseu, Castelo de São Jorge em Portugal e mais, muito mais, bota mais nisso tudo, que nunca você vai atingir a extensão desse enorme mais. Malas, roupas, passagens, hotéis tudo reservado e (pago antecipadamente) e etecetera... e etc...
             Chegou o dia da viagem, eu iria com o grupo de premiados. Acordei sem condições de levantar, a coluna travou, qualquer movimento a dor era intensa, todos os músculos tensos e sem forças. “E agora sonhadora”? A única coisa que eu ouvia era: - Você não pode viajar de jeito nenhum.  Sou contra usar o choro como recurso, acho que desabafa, mas enfraquece e tira o ânimo. Choro sim, com lágrimas de alegria. Nunca me entrego, não enterraria meu sonho sonhado, desejado, e curtido ele tinha que se realizar. A minha mãe que na época já era falecida tenho certeza que ela diria: - Forças, você vai... vamos rezar, vamos pedir.  Recomendação médica: repouso absoluto. Injeção, medicação nada fazia efeito, nada, e o tempo apressava passando rápido. Até que... um anjo veio fazer uma visita  (minha irmã)  e ela falou com autoridade: - Você vai nem que seja de cadeira de rodas, levanta dessa cama, deixa doer, e batia palmas e repetia – não deixem roubar seu sonho -  e puxava meu braço, toma um banho, vista-se que vou trazer uma mala pequena que dê para você carregar, volto já. Milagrosamente levantei e consegui me arrumar, a fé remove montanhas e o desejo intenso atrai realização é preciso querer com a magia de uma criança confiar com a certeza de uma como criança e ter a ousadia de pensar que tem direito a realização de sonhos.
              Moro longe do aeroporto, mais ou menos uma hora e trinta minutos, dependendo do trânsito da descida da serra e da Avenida Brasil. Voo marcado para vinte e duas horas. Saímos às dezesseis horas de casa com tempo para qualquer eventualidade. A dor era tanta que ultrapassou os limites do som, mas no rosto a alegria estampada de estar vencendo barreiras. Meu filho no volante e vamos nós. Milagrosamente a serra estava livre. Tem sempre um porém, sem ‘poréns’ não existe história. A Avenida Brasil estava literalmente parada, estagnada. Acredite!  Cinco horas parados no trânsito congestionado. Meu filho apreensivo comentou: - mãe, onde estamos é impossível chegarmos a tempo mesmo que o trânsito estivesse liberado.  Eu pedia, rezava e acreditava, foquei a visão sentada no avião junto com a turma. Indiscutivelmente a realização do sonho é resultado da fé. Mais um milagre, veio uma ambulância com sirene a todo vapor e o caminho abriu-se e meu filho (que não faria isso nunca) seguiu atrás da UTI móvel, colado, quando a ambulância seguiu o destino dela abriu-se um caminho como se fosse o mar Vermelho. Faltava cinco minutos para às vinte duas horas quando chegamos ao aeroporto. Meu amado filho correu a minha frente com o intuito de despachar a mala, já tínhamos feito o check-in online. E eu com uma perna retesada pela dor e mancando cheguei ao portão indicado para o embarque, mostrei a passagem e o responsável com voz pausada: - A senhora está com sorte, entra rápido que o voo está atrasado. Fui aplaudida pelo grupo quando cheguei  e" me” dei ao direito de chorar.  A viagem foi maravilhosa, inesquecível, esplêndida! Só agradecer...   
               A notícia do caos no trânsito estava estampada em todos os Jornais e noticiários: motivo do engarrafamento do trânsito no Rio de Janeiro - tiroteio entre polícias e bandidos e três corpos no meio da Av. Brasil. E a decisão de quem iria pegar os mortos foi difícil: um órgão só retira mortos de acidente se for de trânsito, outro órgão só retira com vida para levar para hospitais, outro não retira mortos de tiroteio. Outro não pode mexer no local do crime sem perícia.
             Enquanto que no Jogo de Buraco é só ficar alerta ao jogo e com uma cartada pegar o morto, no Jogo Burocrático em arcabouços legais - NINGUÉM QUER PEGAR O MORTO - é o Jogo de Empurra ou de SINUCA em que o povo fica encaçapado no emaranhado da impaciência e impotente diante da inflexibilidade do poder. Insistir no sonho e pensar de forma contrária é receber o título de descendente de bisavós que se livraram da fogueira.  É preciso abrir passagem para os sonhos em estradas de cristal e ter a hombridade de pontuar que é o outro o morto e tem muito mais buracos profundos em jogo.

 

 

 
 
Conto publicado no livro Quem vai pegar o morto?" - Fevereiro de 2016