Jonatas Rubens Tavares
São Francisco do Sul / SC

 

 

 

As peculiaridades de Clarice

 

- O que será que essa menina pensa da vida? – alguns se perguntavam assim que ela surgia.
Clarice era uma jovem peculiar, é certo que ninguém o negaria. Tinha, consigo, hábitos pra lá de singulares. Coisas do tipo que pouca gente compreendia. Será que era essa a explicação, o motivo pelo qual Clarice sozinha vivia?
No meio da tarde, sempre que podia, por mais corrido que estivesse o dia, Clarice um breve e imersivo cochilo se permitia. Quando acordava, luz do sol plena à janela do quarto, parecia que um novo dia, com mais vinte e quatro horas nascia.
Enquanto ia para o trabalho, sempre que identificava no ônibus, nas ruas, na cafeteria, alguém que precisasse ser ouvido, mesmo correndo o risco de se atrasar, Clarice ouvi-lo se permitia. Sorria, gargalhava, ficava aflita, se emocionava; assim, ouvindo, parecia que outras tantas experiências, outras tantas histórias, outras tantas vidas vivia.
Por essas peculiaridades Clarice sozinha vivia?
Quando chovia, nos desenhos formados pelas gotas de chuva que pelas janelas escorriam Clarice se perdia. Não que se dedicasse a formas sem vida; antes, perante seus olhos esses desenhos se moviam, bailavam, contavam histórias que ninguém conhecia. Indiferente àqueles que assustados a observavam, Clarice sorria.
Vez por outra, quando no contato com uma alma sofredora, Clarice se esvaía. A dor do outro, como se sua fosse, a jovem então sentia. Seu coração de todo se compadecia, levando-a às lágrimas de uma empatia tão verdadeira, tão sincera, tão tomada para si, que nem sequer mesmo Clarice compreendia.
Em teatros, cinemas, galerias de arte, apresentações musicais, museus, Clarice era arrebatada em plena luz do dia! Um piscar de olhos e se ia! Não raro, no findar da apresentação, no encerrar do horário da exposição, a fim de despertá-la alguém a sacudia. Mergulhada nas obras artísticas, fisgada pelo plano das ideias, da realidade desaparecia. Mesmo quando voltava, não raro algumas dessas obras as acompanhavam por dias.
Por essas peculiaridades Clarice sozinha vivia...
Nas noites em que o clima o tornava possível, a atenção de Clarice demoradamente no céu se detinha. Estrelas piscavam, divertidas, ao longe; iam e vinham em sinfonia, decerto, orquestrada pela lua. A música, não raro, Clarice da terra subtraía. Verdadeiras viagens intergalácticas do jardim do quintal a jovem fazia.
No contato com os bichos, Clarice, alguns diziam, seu lado animal assumia. Outros afirmavam que à infância nesses momentos a jovem regredia. Rolava na grama com os cães, aninhava-se com os gatos, com os cavalos de braços abertos corria. E dessas interações com a bicharada nada nem ninguém a impedia.
Em tudo quanto observava, um imenso gosto de renovada novidade Clarice invadia: a fumaça, serpenteante, lenta, subindo da xícara de café quentinho; o sorriso aberto das crianças que no parque corriam; um pássaro que, em meio ao caos da cidade, animada cantoria emitia; o interesse e compenetração de alguém que um livro lia...
E havia determinados momentos em que em quase tudo Clarice dos demais diferia: se acalmava enquanto imperava a ira, caminhava enquanto uma corrida se sucedia, olhava para o lado enquanto o padrão era fingir que nada se via, falava enquanto calar era o que havia, elogiava enquanto um destrutivo criticar ocorria, dedicava-se à reconstrução no exato momento em que alguém de forma despropositada destruía, encarava enquanto a fuga em massa se empreendia, seguia adiante enquanto a marcha encerrava em plena luz do dia.
Por essas peculiaridades Clarice sozinha vivia!
Clarice, a jovem peculiar que pouca gente compreendia, era bela, agradável, mas ainda assim sozinha vivia. Aguardava, em segredo, pelo dia. Sim, sabia, chegaria o dia em que um jovem tão peculiar quanto ela – se não mais – o caminho de Clarice cruzaria. Desse dia em diante, uma vez compartilhada, a peculiaridade nada mais que normalidade seria.





Conto publicado no livro "Por trás dos panos" - Contos selecionados
Edição Especial - Janeiro de 2021

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