José Faria Nunes
Na mata da onça
Cabresto na mão, espiga de milho no bolso, desço a ladeira do “Soledade”, equilibrando-me nos pedregulhos do trilheiro. Avisto ao longe a tropa, no alto do outro lado. Na cabeça, a ideia da surpresa. Faz mais de mês que não vejo minha mãe, que mora do outro lado da mata da onça, na “Guariroba”. Daqui lá, cavalo bom e cavaleiro experiente, umas duas horas e pouco, em marcha puxada. Na ponte desvio-me dos poços de lama, ganho o outro lado e começo a escalada. Receio que o capeta desembeste com os outros cavalos pasto a fora. Capeta é um tordilho forte, maior que os demais, menos amistoso com cavaleiro inexperiente. Por isso tio Adolfo recomendou-me pegar o Manhoso, um baio manso, que até criança pode montar. O Capeta, esse só o Nêgo gosta dele. Nêgo parece com o Capeta: azogado. Nos pastos e nas estradas comum é se ver a dupla a galope. Ajustam-se como mão e luva. Aproximo do plantel e, pasme! Os cavalos fogem, menos o Capeta. Quero pegar o Manhoso, mas o dito torna-se mais arisco que o Capeta. Diante do receio de pegar a noite na mata da onça, vem-me à mente que o Capeta é providência de Deus. A lerdeza do manhoso poderá complicar-me na mata. A agilidade do Capeta será providencial. Tiro do bolso a espiga de milho, escondo o cabresto por traz do corpo, chamo: “vem, vem, vem...”. Ele não vem mas me permite chegar até bem perto e jogar-lhe o cabresto. Ajeito a peça na cabeça do animal, puxo-o até um cupim, monto, seguimos para o curral. Amarro-o na porteira do paiol. Bacheiros, arreio, pelego, baldrana, e a rédea com o freio. Ajusto os loros na altura certa dos estribos. Tudo arrochado na conformidade de minhas parcas forças. A deficiência do braço quebrado na infância dificulta-me algumas habilidades. Daí o tio Adolfo recomendar-me o manhoso. Tio Adolfo balança a cabeça, gesto de reprovação. “Que Deus o acompanhe!” diz o tio, eu monto o Capeta, firme com o freio. Capeta pede rédea, eu cedo e pegamos um trote largo, eu feliz com o cavalo que só o Nêgo costumava montar com desenvoltura. Deixamos a estradinha da fazenda, pegamos a estrada de máquina. De um lado, a pastagem entre cerrado baixo e ralo, do outro a crôa fechada. Marchamos em direção à venda do Liontino, perto da Olaria. Ao passar pela venda pessoas saem à porta, curiosas. Ouço o comentário de alguém: “Cê viu? Parece o professor montado no Capeta. Como ele tem coragem! Meu Deus!” Só então cai-me a ficha, percebo que tio Adolfo tinha razão. Deveria ter insistido em vir com o manhoso ou até melhor seria se tivesse desistido da viagem. Tarde demais para pensar nisso agora. Já deixamos a estrada de máquina e pegamos a estradinha da Guariroba. No plac-plac dos cascos do cavalo no chão duro da estrada lá vamos nós, o Capeta e eu, rumo à casa de meus pais. Uma surpresa para minha mãe e maior ainda por eu chegar montado no Capeta, animal conhecido nas redondezas e temido por muitos cavaleiros. Ao caminharmos percebo um barrado de nuvens pelas bandas do oeste. Nuvens daqueles lados, chuva na certa. E eu não me lembrei de pegar capa para me proteger. Repito para mim mesmo o que disse antes para tio Adolfo: seja o que Deus quiser. Parte da estrada com chão duro, parte arenosa, alguns trechos com areia que faz o cavalo marcar passo. Ao longe as nuvens escurecem o céu, levantam-se com promessa de tempestade. Relâmpagos riscam a imensidão escurecida, trovões, a princípio tímidos, agora estrondam com estardalhaço. Tenho medo de raios e detesto trovoadas. Lembro-me de quando uma tempestade arrancou o capim de nossa casa na beira do Água Fria, mistura de prejuízo e medo. A ameaça da chuva faz-me esquecer de que já estamos na mata da onça. Os enormes jatobás e outras espécies arbóreas fecham a estrada por cima, a estrada torna-se um túnel verde, dando passagem para cavalo e cavaleiro. Sem relógio para precisar as horas, a escuridão do tempo ameaçador no meio da mata dá ares de já estar anoitecendo. “E se uma onça aparecer, de súbito?” Agora mistura de medos: medo da tempestade, medo da onça, medo do cavalo disparar, medo de ser comido pela felina. Rédeas sempre curtas, firmes, garantia de domínio do Capeta. Qualquer barulho de lagarto a correr pela folhagem seca no chão da mata faz-me bater forte o coração e as orelhas do Capeta ficam em riste, sinal de alerta.Entre a mata devemos ter caminhado por mais de hora e outro tanto ainda temos que caminhar. E a noite chega. Um tropel na mata assusta o Capeta e muito mais a mim. Coração disparado, adrenalina nas alturas. Agora, sentimento só de medo, maior ainda ao a lembrar-me de que dia é hoje: sexta-feira, 13, semana das dores, dia em que tudo de esquisito pode acontecer. Ainda que na escola tenha sido ensinado não passar de superstição, a convicção de meus pais fala-me mais forte e o coração quase a sair pela boca. Nada é tão ruim que pior não possa ficar, verdade que se me concretiza nesta hora em que o capeta empaca e só então percebo um vulto que surge um pouco mais à nossa frente. E ele de nós se aproxima, a mente pensa em virar o cavalo para trás e debandar, mas fico inerte, rédea tesa, vendo o vulto se aproximar. Algo muito grande, maior que o cavalo, descomunal, olhos de brasa, a faiscar. Maior que elefante, mais feio que bisão, só poderia ser o Maligno, forma da pior forma. Aproxima-se tanto que consigo ver-lhe os pelos eriçados sobre os olhos, duas lanternas, dois olofotes, vermelhos, chamas como as de um vulcão, só que em nossa direção. Agora vejo-lhe os dentes, enormes, a sair da boca do monstro. E se aproxima, aproxima, aproxima... já ouço o farfalhar de folhas sob seus pés, enormes pés, enormes patas, peludas, agora já ao alcance da cabeça do cavalo. E só me resta um recurso: gritar, mas o grito fica entalado na garganta. Jurandir! Jurandir!
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Poema
publicado no livro "Muito moinho pra pouco Quixote" - Contos - fevereiro de 2018 |
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