José Ricardo Olívio Rocha
Volta Redonda / RJ

 

 

A Praça do Leão

 

Quatis é uma cidade vizinha à Barra Mansa, ambas no interior do estado Rio de Janeiro. Nesta época ainda era um distrito. Lá morava um tio meu por nome Antônio. Com duas filhas pequenas, era diversão garantida toda a vez que íamos visitá-los. A casa em que moravam era muito simples, porem com um quintal imenso e muitas árvores frutíferas. Um ótimo cenário para as crianças daquela época brincarem. Eles tinham um cachorro, também sem raça definida, só que era enorme. Provavelmente fora seu tamanho avantajado que inspirou o seu nome. Morava com eles também um senhor bem idoso, José Calixto, Bis-avô das minhas primas. Com seus quase cem anos de idade, tinha “Leão”, como seu fiel escudeiro. O bom velhinho gostava de caminhar pela manhã até a praça da cidade, onde se sentava e observava o movimento dos transeuntes. Raramente ouvia-se o ruído estridente de algum automóvel se aproximando. Naqueles dias, a maioria das pessoas andavam a pé ou em seus cavalos. Gostava também de alimentar os pombos que já acostumados, não hesitavam em se aproximar do bom velhinho.
Leão, considerado um cão idoso, o acompanhava a passos lentos. Na praça o víamos dormindo entre os vorazes pombos que pareciam não se intimidarem com sua presença.
José Calixto era cafuzo, descendia de índios da extinta tribo que habitou nesta região antes de serem exterminados por exploradores lusos brasileiros. Os Puris eram um povo pacífico e tímido que foram brutalmente dizimados. Seu pai fora um legítimo Purí que se refugiou na região que hoje recebe o nome de Vila da Fumaça, em Resende. Aprisionado, foi levado cativo para trabalhar na lavoura de café.   Lá conheceu uma escrava, com quem se casou e tiveram um único filho. Infelizmente ambos morreram precocemente vitimados pela varíola, deixando o ainda menino, órfão. O mesmo permaneceu na fazenda por muitos anos até que se mudou já com esposa e filhos para a região de Quatis.

AMARGA VINGANÇA

Era uma manhã de domingo. José Calixto alimentava os pombos. O velho amigo como sempre, dormia aquentando-se sol. Não muito longe, havia uma birosca, essa ficara durante toda á noite passada ao som de forró e muita cachaça. Sentado do lado de fora do boteco, já com as portas fechadas, estava Malaquias. Frustrado em sua expectativa de conquistar a bela Cecília, ficou ali mesmo chorando ás mágoas. Com o raiar do dia e ainda cambaleante, decidiu voltar para casa. No caminho avistou o velho com seu cachorro na praça. Com a mente ainda possuída pelo álcool, resolveu atormentar o pobre velhinho.
— Negro velho! Não tem mais o que fazer? Você e seu cachorro nojento. Desocupa logo este mundo.
Ao perceber que Calixto não esboçava qualquer reação, irritou-se ainda mais. Então continuou a praguejar:
— Levanta deste banco velho asqueroso! Eu vou fazer um favor pra todos nesta cidade. Já passou da hora de você se encontrar com aqueles selvagens que você tanto fala. — Disse essas palavras apontando para uma peixeira presa à cintura.
Calixto, no entanto, permanecia frio e indiferente. Em contraste com os pombos que a esta altura já haviam se dispersado. Diferente foi também a reação de Leão que apesar de continuar deitado mantinha-se em alerta voltado para o agressor. Quando esse se aproximou alem do limite de segurança que o cão estabelecera, partiu para o ataque em defesa de seu dono. Porem o peso da idade tirara-lhe a agilidade necessária para obter pleno sucesso na investida. Malaquias já estava com a faca em punho, quando percebeu o súbito ataque do animal. Uma injeção de adrenalina correu em suas veias, neutralizando assim o efeito do álcool em seu organismo. Não pensou duas vezes, deferiu-lhe um único golpe no peito do animal.

A BELA CECÍLIA


Cerca de uma semana atrás, Malaquias estava no mesmo bar numa roda de amigos. A conversa girava em torno de Cecília, uma jovem enfermeira que trabalhava no único hospital daquela pequena cidade.
— Você não tem a menor chance, Malaquias. Esta moça é bonita, educada e não gosta de farra como você. — disse um de seus amigos.
— Engano seu, faço muita fé no meu “taco”. Bastam somente algumas palavras ao pé do ouvido e ela vai se derreter todinha. Não estou mais a fim de trabalhar, preciso de alguém que me sustente. — Respondeu.
A conversa continuava aos risos e deboches.  Os homens já bem alterados pela reação da bebida, não perceberam naquele momento a presença de Calixto, que estava nos fundos oferecendo ao proprietário sua pequena produção de mel. Cecília era neta de um grande amigo seu. Sentiu-se na obrigação de alertá-la sobre as más intenções do rapaz.
De volta à praça víamos ambos caídos ao chão. Malaquias sob o cão já sem vida continuava praguejando:
— Cachorro nojento! Velho asqueroso!
Sem se dar conta do que realmente acontecera, ele se levantou. Ao perceber o que fizera começou a chorar desesperadamente. As poucas pessoas que estavam ali se ajuntaram revoltadas diante da trágica cena. Malaquias temendo por uma retaliação por pare deles fugiu e nunca mais foi visto por aquelas bandas.
Calixto, no entanto permanecia em total silêncio ao lado do seu cão. Talvez estivesse em choque. Sua face negra ocultava as lágrimas que rolavam e molhavam o corpo sem vida de seu fiel companheiro. Após algum tempo, meus tios apareceram e o levaram para casa. Leão foi enterrado nos fundos do quintal, próximo de onde ele sempre ficava ao lado seu dono, quando este estava cuidando da pequena criação de abelhas. Durante muito tempo aquela praça da cidade, ficou sendo chamada por algumas pessoas de “A Praça do Leão”.

 

 

 

 

 
Poema publicado no livro "Muito moinho pra pouco Quixote" - Contos - fevereiro de 2018