Célio Dubanko
Maceió / AL

 

 

A grande jogada



      A última curva da estrada sempre teve, para mim, um significado especial: a reconfortante sensação da volta para casa, da iminente chegada à terrinha querida. A partir dali o coração galopava e se deleitava na gostosa expectativa do reencontro com os velhos e queridos amigos que, ao contrário de mim, ali haviam permanecido, fiéis ao seu pequeno torrão.
      Depois de passar a manhã inteira às voltas com os problemas que motivaram minha viagem, me vi diante de um pequeno dilema característico de lugares como aquele: onde almoçar? À primeira vista, nada que se aproximasse dos bons restaurantes aos quais eu me havia acostumado. Uma pergunta aqui, outra acolá, e fui parar num barzinho pequeno, empoleirado no andar de cima de uma loja de mangaio, simples e aconchegante.
      Foi lá que o encontrei! Não dava pra chamar de amigo, nem éramos tão próximos assim. Mas Zezão – apelido que ganhara devido ao porte físico que, se outrora fora avantajado, hoje sucumbia ao inexorável peso dos anos - não se fez de rogado: me reconheceu de cara e me recebeu com uma verdadeira algazarra, emendando cumprimentos com perguntas sobre minha vida e arrematando com causos do nosso tempo, todos eles passados no campo de terra batida onde batíamos nossas peladas domingueiras. Ele fazia as perguntas e ele mesmo as respondia sem me dar tempo de respirar. Do meu filho mais novo, que me acompanhava na ocasião, ele descreveu a infância com uma riqueza de detalhes inimaginável para alguém que sequer vira o garoto dar os primeiros passos. Dos nossos enfrentamentos esportivos brotaram lembranças de jogadas e vitórias brilhantemente protagonizadas por um artilheiro de chutes certeiros e cabeçadas mortais. Quem? Ele, é claro! Ele, e mais ninguém, era capaz de tamanhas proezas! E haja conversa...
      Obviamente, diante da eloquência das fantasiosas narrativas, não me consenti a desfeita de contestar, sequer tentar corrigir. Não seria eu a lhe estragar a glória momentânea e imaginária, o audacioso voo da sua mente prodigiosa, capaz de lhe fazer recordar com nitidez fatos nunca acontecidos e reviver sensações jamais vividas.
      Me reconhecendo, o dono do estabelecimento veio até nós. Sorriso largo, efusivos cumprimentos. A Zezão, poucas e rápidas palavras, quase inaudíveis, mas que me deixaram a certeza de que, para o meu entusiasmado interlocutor, aquele almoço era uma cortesia da casa, diariamente repetida. E que aquela seria, provavelmente, a única refeição decente que ele faria em um espaço de vinte e quatro horas.
      Senti pena, muita pena! Aquele velho diante de mim não era nem sombra do centroavante forte e raçudo que rompia no peito as defesas adversárias. Era um trapo humano escondendo-se na pele de um herói que nem a si mesmo, nem às paredes do próprio quarto, conseguiu convencer que existia.
      De repente, me senti miúdo, apequenado por um injustificável sentimento de culpa. Atormentado por ter galgado um sucesso profissional e financeiro que nem ele e nem outros que ali ficaram sequer ousaram tentar. Me ocorreu então que o pouco que eu encontrara naquela minha volta era o que de melhor aquele lugar poderia me oferecer: a festa do reencontro, não apenas com velhos companheiros, mas principalmente com o pedaço mais puro e genuíno de mim e do meu tempo ali vivido. Percebi que, ali, meu carro importado não tinha valor nenhum, minhas roupas de grife sequer eram notadas. Ali, pouca ou quase nenhuma importância tinham as camisas que vesti como profissional da bola. Tampouco se eu havia feito o gol consagrador que garantira o título ou cometido a falha que levara à derrota. A prazerosa festa em cada reencontro não era para quem eu me tornara. O verdadeiro destinatário de tanto carinho era um magricela de pernas meio tortas que eles viram nascer, crescer, carregar fretes na feira para ajudar na renda familiar, e um dia se rebelar e partir em busca de desafios.
      Perdi a conta das vezes que, com certa dose de arrogância, repeti para mim mesmo: - Venci! Venci nada! Aquilo não era vitória! Era uma sonora e merecida bofetada na cara!
Desliguei o celular e deixei as horas voarem. Só então, depois de dar-lhe um vigoroso abraço e beijar-lhe carinhosamente a testa, me permiti ir embora, levando comigo, além da certeza de que algo deveria ser feito, o firme propósito de fazê-lo acontecer. Muitos deles precisavam de um apoio. Eu, de expiação.
      Movi mundos e fundos e, pouco tempo depois, uma instituição foi criada para acolher pessoas que, como ele, ali fincaram suas raízes. E ali sucumbiram e murcharam, como almas desprovidas do mais vital dos alimentos: a esperança.
No dia da inauguração, Zezão contou alegremente como, dos seus heroicos pés, haviam surgido jogadas mirabolantes e gols milionários com os quais ele havia realizado tudo aquilo. Assim como só ele e mais ninguém, absolutamente ninguém, era capaz de fazer.
      Desta vez, confirmei cada palavra daquela nova narrativa. Pelo menos em um detalhe ele estava certo, absolutamente certo. Fora a partir dele que tudo começara a mudar. Naquele dia, naquele bar, sem saber, ele finalmente fizera a grande jogada da sua vida!

 

 


 




Conto publicado no livro "360 roteiros para um destino"
Edição Especial - Abril de 2021

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