Andrea Sales
Belo Horizonte / MG

 

Minha solidão

 

 

Da última vez que o vi, ele descia a rua e já estava muito longe para que eu o chamasse.
A agitação interna tornou mais lentos meus movimentos, mesmo assim tranquei a janela e destranquei a porta, desci a escada de madeira que rangia sob meus pés.
Quando alcancei a rua ele já havia sumido. Abracei-me à coluna que ia terminar num balaústre. Sentei-me no parapeito do alpendre. Virara a esquina? Entrara nalguma loja? E eu? Correria a sua procura? Esperaria por ele? Deixaria um recado com a empregada que limpava a longa varanda de mármore? E nós? Sairíamos de mãos dadas no passeio combinado?
Mas afinal o combinado fora qual mesmo, Meu Deus? Eu esperá-lo do lado de fora, ali no alpendre ou meu quarto de cuja enorme janela de batedores enxergava a rua? Ele tocaria a campainha?
Enquanto pensava ele se distanciava e o temo corria de crina solta. A tarde transcorreu em luto fechado, destarte a janela aberta, o sol, a brisa das flores salientes por serem as primeiras da primavera a colorirem as ruas de Belo Horizonte com seus Ipês.
A vontade de seu abraço não recebido daquela tarde transformou-se em desdém. Sentimento que representa meu vazio existencial, disse-me o psicólogo uma vez.
Seu “Oi!” e meu vazio cheio de desdém agora e meu desdém cheio de vazio dos anos 90 se encontraram em nosso desencontro. Nada de vingança. Desencontro. Outro. A vingança é unilateral. O desencontro é bilateral por essência.
Se bem que eu sempre poderia ter evitado. Tudo, sempre. Tudo sempre esteve em minhas mãos. No grito que eu poderia ter dado: “José, espera!” Um grito na rua cheia não causaria constrangimento a ninguém, nem mesmo se ele não se virasse. A rua estava barulhenta em 1998. Se ele não se virasse eu fecharia a janela de madeira e o povo. Olhasse, e risse, não olhasse como ele, olhasse como ele. Não faria diferença. Tudo poderia ser mudado com um grito. E eu já gritei tantas vezes sem obter benefício algum.
Até tentei remediar o caso retornando todos os telefonemas perdidos do meu celular cujo número eu desconhecia, uma vez que poderia ser ele ligando de um telefone emprestado, mas nunca deixava a ligação se completar. De forma que se num fim de tarde chuvoso, ele, debaixo de uma marquise de ônibus, tivesse me ligado insistentemente do telefone empresado de um simpático desconhecido, eu nunca saberei.
Agora, em pleno 2016, ele aperta o passo para me alcançar, ando sempre rapidamente, e me fala “Oi!”.
Eu não eu não me viraria, de qualquer forma, estava atrasada para a vida, para chegar em ponto ao tique taque do tempo, mas sua voz familiar, deu uma pausa no tique taque e eu queria olhar em seus olhos mais uma vez. E ele parou seja lá o que estava fazendo e alterou sua rota para oferece seu “Oi.” Ele poderia ter me dado uma ordem: “Bom dia!” ou me inquirido: “Como vai?”
Mas ele me deu um presente naquela manhã fria, seu mais doce “Oi!” Virei-me e descobri que o presente estava embrulhado em seu sorriso matinal. A barba estava feita, como no segundo dia em que nos encontramos. O que me deu a vaga impressão de que ele fazia a barba todas as manhãs desde 1998. Talvez se preparando para nosso sempre possível encontro.
Isso porque a barba dele era tão mal cuidada quando nos conhecemos que lhe dei o apelido de Neandhertal. O terno sem gravata caía bem no nosso novo homem das cavernas que em nada se parecia com o hippie que eu conhecera nos anos noventa.
Eu respondi “Oi.” E ele me abraçou. Afastei-me de frente para ele dois passos. Foi o suficiente para dar o meu recado, todo o longo recado que formulei durante esses 18 anos e para perder o sentimento daquela tarde dos anos noventa.
 Tudo foi levado com uma rajada de vento que veio levando seu perfume e seu calor a ponto de eu ter de trespassar o casaco com as mãos cruzando os braços. Depois ajeitei os óculos, dei mais um passo ainda olhando para ele e me virei procurando o ponto do fio do tempo onde continuar minha vida normal e solitária. Atravessei a rua entre a faixa de pedestres, naquela famosa rua em que não há mais volta.
Se bem que eu ainda poderia ter me virado e gritado “José!”. A rua estava cheia e barulhenta. Se ele se virasse ou não, ninguém notaria...

 

 
 
Poema publicado na "Seleta de Contos de Autores Premiados"- Edição Especial - Janeiro de 2017