Romilton Batista de Oliveira
Itabuna / BA

 

Crônica da vida cotidiana

 

                

Todos nós sabemos que a humanidade é uma invenção do distraído mundo dos conceitos. Para cada coisa, há sempre um conceito, mas nem sempre para cada conceito, uma coisa. Assim, o mundo gira em torno dos conceitos e das coisas. Gira em torno de quem vai e de quem vem, de quem faz e quem desfaz, de quem grita e quem geme, de quem manda e quem obedece, de quem fala e de quem escuta, de quem para na estrada e de quem continua a caminhar, de quem voa e quem deixa de voar… Você que está a ler esse texto em busca de algo que gira em torno de um processo que, por hábito, somos impulsionados a buscar, a sonhar, a planear em torno de desejos e aspirações que emergem de nosso “eu”, em forma de impulso. Essa pulsão é o que faz o mundo girar, as pessoas saírem do lugar, as palavras começarem a reinar, etc. e tal. Agora mesmo, inconscientemente, estou a escrever movido por esse mesmo processo no qual todos os sujeitos estão assujeitados. Não quero nem parar para aqui pensar neste assunto. Prefiro continuar a teclar neste teclado mudo. Com os meus dedos aciono meu interior, e este rapidamente responde a meu comando. Assusto-me com o que de lá está a vir em forma de tempestade, ventos fortes... Como uma árvore repleta de troncos, ramos, galhos, folhas e flores, o interior dá uma rasteira em seu proprietário sem potência. E eu, impotente, percebo que não sou dono de meu próprio discurso!
Vamos adiantar essa crônica que ainda não saiu de seu fixo lugar. Vou passear pelas ruas nuas, vazias e fantasmáticas de um país que chora silenciosamente, sem dor, interpelado por uma violência centralizadora e milenar que esconde nas calçadas, nas suas ruelas as marcas de um passado colonial, movido por vozes pós-coloniais. Eis a nação! Eis o povo! Eis a história! Eis o livro! A história e a memória no rastro de um trauma coletivamente compartilhado…
Agora vou passear por outro lugar onde não há tanta violência silenciosa. Lá as vítimas são constantemente apagadas da história. Os seus cidadãos lutam contra seus próprios cidadãos. Lá a democracia depressa se exala nos esgotos abertos em plena modernização tecnológica. As pessoas não têm tempo de falar umas com as outras artesanalmente. Como robóticas conversam por fios traumáticos armados por aparelhos que aproximam os seres em suas vidas mortas e reinventadas, sem alma, sem criatividade, sem dignidade. Países se amontoam, países se desencontram em seus falsos encontros ideológico-discursivos. A nova moda tecno-desumana adentra a alma dos selvagens, tornando-lhes seres-máquinas, imunizados ao humano, seres inumanos, potencializados por frágeis e precárias forças da degenerescência humana.
Abandono o passeio, e saio da estrada a percorrer por outro caminho e, de repente, dou-me conta que há alguém a falar por mim, dentro de mim, e a usar palavras e pô-las em minha boca, triste fim de Romálisson, triste fim dos conceitos que sempre estão a deslizar-se de seus absolutos “lutos”, aprisionando quem os cria a aprisionar os identificáveis “sujeitos da ordem”. Há os não-identificáveis que se distanciam para outra zona, diferente e estranha, formando outra forma de pensar e ver as coisas, numa outra dimensão conceitual. Identidades se viram, diferenças se foram...
Tombado está o mundo pelo próprio mundo, regido por formas que se deformam. Estamos fadados, então, a viver numa reta… sem curva. Pois as curvas levaram quase à destruição um povo inteiro. E um dia, se a humanidade permitir-se sair da reta e abraçar “a curvatura do mal”, poderá ser extinta para sempre, e nem as baratas sobreviverão à curvatura. A “curvatura do mal” que fez tanta gente, dita culta, sensata e iluminista, a escrever sobre a banalidade do mal que sangrou a humanidade que crescia sob as sombras de um pensamento filosofado, pontualizado, cartesianizado.
Esta mesma humanidade fechou os olhos no passado, e como língua sobrevivente que Paul Celan trouxe à tona, ela (a humanidade) e a língua sobreviveram, e viu, lá de seu canto de dor, a passagem do horror…
A crônica do quotidiano presente não consegue esquecer de seu passado porque está no presente que continua vivo as sombras, os restos, rastros e resíduos de vozes que foram silenciadas e de vozes que presenciaram a insana partida dos que foram… Esta crônica, escrita em Portugal, daqui de Covilhã, no saudoso verão com cheiro ainda de inverno, é uma crônica escrita com acento circunflexo, embora o computador esteja sempre a negar e rejeitar o acento. E ousadamente exponho-a, lusitanamente, cronicamente viável, crónica dos subalternos, dos mudos, dos imundos, crónica cronicamente inviável porque falar do cotidiano ou do quotidiano não é nada fácil quando o escritor está sendo atingido por duas línguas que se cruzam, por duas culturas que se integram, formando uma nova forma híbrida e heterogênea (ou heterogénea como se escreve no português de Portugal) de ser. Aqui se registra (ou regista, como se diz num bom português lusitano) a voz de um sujeito que escreve como sobrevivente de mais um dia nesta terra ameaçada por signos, discursos e poder… Terra ameaçada pelo esquecimento, pela memória não-oralizada, pela estação da agonia, cheio de pós-operacionais e conceituais… Um mundo onde habita tantos pós, pós-naturalismo, pós-realismo, pós-colonialismo, pós-modernismo, pós-liberalismo, pós-pós, só restará a poeira que nenhuma crónica ou prosa será capaz de enunciar.
A crónica da vida cotidiana se despede de sua aventura pelo longo caminho de atalhos, ventos e curvas, prometendo voltar, por outro caminho, vestida de tempestade viva, operante e avassaladora, desorientada pela gente que maltrata gente e come gente, gente que nem sabe que um dia deixará de ser gente, pois nada escapa da comedora terra. Terra que está cansada de ser contaminada por corpos tão insanos. Terra que espera que na nova remeça, venham corpos que possam adubá-la em seu secreto sono, outorgado pelo Criador!
A crónica da vida quotidiana explode em cada esquina, ameaçando os espaços constitucionais, rasgando a Carta Magna dos discursos dos ditos homens da Lei, que vivem fora da Lei, e governam por meio de um paradigma do esvaziamento do ser, da cegueira do povo que geme, espreme-se numa tribo global chamada Brasilândia onde os ratos farejam discursos de pseudos jornais que noticiam as verdades que os poderes desejam. E por falar em poderes, onde estão os tais? Prontos para dar o próximo bote. Como cobras venenosas querem picar, mas o povo que está cansado de ser picado por essas cobras começam a tomar um antídoto contra tais “seres rastejantes”, e tão certo como dois mais dois é igual a quatro, essas cobras venenosas picarão a si mesmas e receberão de seu próprio veneno nas urnas que serão abertas pela democracia que emana da voz que se levanta contra esses “bichos peçonhentos”. Viva o povo brasiliano que está cansado de ser “escada” e “ponte” para esses “cancerígenos” que a terra há de comer! Pobre terra que se contaminará com os corpos desses vermes podres! Rica terra que celebrará o dia da vitória do bem contra o mal, e novamente há de tornar-se limpa, pois “já raiou a liberdade no horizonte do Brasil…”.

 

 
 
Publicado no Livro "Seleta de Contos de Autores Premiados" - Edição 2018 - Setembro de 2018