Maria Ioneida Lima Braga
Capanema / PA
Um coração para ouvir
A cidade era Mato Fino. Muito boa de se morar. Cheguei ali recém formado em advocacia e logo montei meu próprio escritório. Meus primeiros encontros com Seu Abdon, um dos fundadores da cidade, não foram lá muito promissores. Era um Senhor taciturno, mas eu queria ganhar a sua atenção.
- Por que Mato Fino? - Perguntei-lhe certa feita - Fui infeliz em fazer - lhe tal pergunta.
- E eu que sei ? - Ele retrucou azedo - Cada pergunta besta, sô. Vai ver é pelo causo de ter o Mato Grosso, né?
Não fui o único a cair nessa esparrela. O homem era por demais ranzinza e avesso a qualquer pergunta. Trabalhou a vida toda numa repartição pública e agora no ócio de aposentado era visto esporádicas vezes a jogar dominó no centro da cidade ou na frente de sua casa a balançar - se numa cadeira velha de balanço. Numa tarde tive aborrecimentos no trabalho, aventurei - me pela primeira vez aproximar-me daquele homem solitário. Ele estava como de costume na frente da casa embalando - se em sua velha cadeira. A curiosidade mandava-me conhecer aquele homem de poucas palavras ou que na maioria das vezes permanecia calado. Cumprimentei-o. Ele levantou- se e em passos lentos entrou e voltou com uma cadeira, convidando - me a sentar. O vazio trazido pelo tom da voz mostrava tristeza e insatisfação. Os olhos arredios emprestavam - lhe um semblante melancólico e sombrio. Eu não sabia por onde avançar a conversa. Mas, lentamente Seu Abdon foi descontraindo e abandonou aquela característica mal-humorada e carrancuda e eu aproveitei sua boa companhia, pois conheci-lhe um outro lado que jamais imaginei que existisse. E falou como conheceu o amor de sua vida. Dai vinha tamanha tristeza.
- Vi Glorinha na delegacia - Disse saudoso –. Eu por razões adversas a essa história e ela por ter sido vítima de violência doméstica. Apesar da cara machucada parecia ser jovem. A vida se encarregou de nos aproximar. Dias depois uma mudança chegou à minha rua. E coincidentemente, era Glorinha. Não demorou e ficamos próximos. O marido logo descobriu seu paradeiro. As recorrentes reconciliações eram sempre um transtorno. Perdi a conta de quantas vezes precisei esconde-la em minha casa. Apesar disso, eu a admirava. Ela era alegre, prestativa, extrovertida e de bom coração. Mas, o meu coração me traiu e eu me apaixonei por ela. Ansiava por mudanças, buscava tudo que era novo, excitante e inesperado. Um dia Glorinha depois de uma bruta surra amanheceu lá em casa. Juntamos o útil ao agradável e passamos a morar juntos. Eu cego de amor e ela sedenta de proteção. Eu me entreguei de corpo e alma aquela paixão. E dela como era de se esperar, não tive nada além de uma vida de turbulência. Naquela tarde cheguei mais cedo do trabalho e ela tinha ido embora. Sofri como um cão sarnento mas, é vida que segue... O tempo passou e um dia fui surpreendido por ela que me esperava à saída do trabalho. Foi uma alegria só, tiramos a tarde de folga e passou a contar-me. Depois da última surra, tomou coragem e denunciou o miserável do marido.- Ele desistiu de você? - Aquele lá era maluco, obcecado.
- Página virada, acabou - ela respondeu animada.
- Não sei não. O sujeito é maluco você sabe disso, né?
Foi uma tarde pelos bons tempos, mas ela estava mentindo e não demorou para dar prova disso. Sumiu mais uma vez e quando reapareceu convenceu -me a ir a sua festa de aniversário.
A festa foi regada a tequila, só para os íntimos, em seu AP. Até o tal ex marido aparecer para estragar tudo e ser arrancado de lá a bordadas pelo porteiro. do prédio. Glorinha segurou a onda e acordamos tarde no dia seguinte, um nos braços do outro e mortos de ressecados. , G-- Logo fomos, cada um para seu lado e fiquei de novo sem notícias dela. Era uma mulher de fibra, muito guerreira. Porém não sobreviveu. A luta foi desigual e com poucas armas, Não escapou da fúria do miserável marido. Ela fugiu para São José dos Campos e foi ser motorista de ônibus, mas ele a encontrou e dessa vez matou-a com cinco tiros . Meu pobre amor... Eu dei cabo dele. Já tô quite com a justiça, mas minha vida acabou.
E assim lentamente conquistei o coração daquele homem triste de alma atormentada, mas que tinha tanta coisa interessante para contar. Fomos grandes amigos e confidentes dos dias difíceis. As vezes ficávamos horas sem dizer uma palavra, só o silêncio ouvindo o nosso interior. Quando fui tentar a vida na cidade grande eu não soube mais de seu Abdon. Só voltei anos depois quando perdi meu único filho num acidente de carro. Com a vida destruída e muito fragilizado. Vim ansioso para o ombro do velho amigo. Mas, por ironia da vida ele se fora havia apenas três meses. A notícia da morte dele deixou- me ainda mais arrasado.
Quando estava entrando no carro para retornar à minha cidade fui abordado.
- Rodrigo é você ? - Perguntou uma senhora aproximando - se. Isso aqui é seu. Entregou - me um cartão. Ele esperou você por todos esses anos. Completou.
Um cartão de meu aniversário do ano seguinte a minha saída da cidade.
Rodrigo: “Essa vida vai passar rápido. Nada sabemos do amanhã.
Mas, que os imprevistos possibilitem enriquecer tuas experiências.
Que nenhuma barreira te impeça de superar teus limites. Tudo na vida é aprendizado. Tudo na vida se supera.” Sábias palavras de um homem tão rude. Retomei minha vida e guardaria sua memoria. Paradoxal, sim, mas de muita sabedoria. Eu teria muito o que contar para meu filho que chegaria dali a seis se manas. Agora, eu sim voltei tarde demais.
|
|
|
|
|