Neri França Fornari Bocchese
Pato Branco / PR

 

 

 

Deixar a vida ir passando

           

          Desde muito menininha vivia sonhando em ser uma pessoa de Bem e reconhecida na Sociedade.
Sempre gostou muito de ler. Empregava o seu rico dinheirinho comprando livros e alugando outros na escola.
Gostava muito de falar, mas era muito reprimida. 
- Cala a boca, menina! - Ouvia diariamente. - Parece a Rádio Farroupilha!
Se chegasse visita em casa, sempre a mesma repressão:
- Não te meta nas conversas. Quando as visitas chegarem, vá brincar lá fora. Se não vamos acertar as contas depois. Onde os adultos estão falando, criança fica de boca fechada.
Até de um tio muito autoritário, ouviu a ameaça:
- Olhe que eu posso te passar a vara. Sou teu tio e tenho autorização da tua mãe. A varinha na época era de guanxuma. Doía pra caramba.
Assim a menininha foi se encolhendo, encolhendo cada dia mais. Passou a viver num casulo. Com medo de tantas ameaças.
Não podia sair de casa para brincar. Menina de família, só brinca com os irmãos e primos.
Na escola quanta recriminação.
Se fazia um trabalho manual, um sapatinho de tricô a professora dizia em bom tom:
- Imagine se foi ela que tricotou, está muito bem acabado. Foi a mãe dela que faz tricô muito bem.
Resultou em muitas lágrimas e xingamentos.
- Deixa de ser boba, menina! Você sabe que foi você que fez. Ninguém tem nada com isso.
Mas nenhum dos adultos da família se prontificou em ir à escola e atestar: - Sim. Foi ela que fez.
O crochê que também era uma das suas paixões, fazia bem-feitinho. Os pontos eram uniformes. Talvez essa aptidão por trabalhos manuais, fosse por não poder sair de casa.
Como era muito doente e, as pernas não ajudavam nas correrias, nas brincadeiras com os primos e irmãos.  O subir nas árvores. Ganharam até uma escada de corda. 
Como disse o autor da façanha:
- Quem for bisneto de marinheiro... que suba.
A escada balançava o tempo todo. Não era fácil, mas subiram.
Eram na maioria meninos, talvez isso fez com que ela quietinha sentada num canto gostasse de trabalhos manuais e os fizesse com capricho. 
Mas os elogios não eram para ela e sim para uma antepassada que segundo a mãe, fora eximia artesã.
- A mamãe também fazia crochê e eram muito elogiada. Seus bordados então...
Não deixava um nozinho. Era preciso olhar bem para saber onde era o lado avesso do trabalho.
Assim foi ela crescendo. Não muito, pois era de estatura pequena.
Quando cortou um dos dedos da mão esquerda, e todo foi um acidente de trabalho, ouviu da própria mãe falando com o irmão dela:
- Agora ela chora, não mais de dor, é de barda. Está na hora de um castigo para parar as chorar tanto. 
Gostava também de escrever. Outra decepção. Sempre gostou de escrever. Desde que foi alfabetizada inventava muitas histórias.  Dava asas à imaginação, como se diz.
Porém outro talento que seria para ser mais um fracasso na vida. Um empecilho para as aptidões.
- Para que escrever essas bobagens? Não vão te levar alugar nenhum.
Não tem ninguém na família que escreve. E ficava por isso mesmo.
Ainda para complicar a vida da menina, por erro de alfabetização, trocava o B com o P, o T com o D e o M com o N e mais uns outros erros de ortografia. 
A professora na sala de aula lia as suas redações como eram escritas. Pronunciando de forma bem acentuada os erros de grafia.
- Era uma risada só, dos colegas.
Por um bom tempo essa dádiva foi ficando esquecida. E, para contribuir, como era miudinha a sua letra também era pequenininha. Obrigada a fazer caligrafia para aumentá-la. Foi um caos só. Umas letras eram maiores e outras menores intercalando-as na mesma palavra. 
O tempo passou, mas a vontade de escrever não morreu. Ficou adormecida como à espera do beijo do Príncipe, encantado.
Anos depois quando cursava Escola Normal entendeu o seu problema. Chegara na cidade em que viveu a infância e os primeiros anos escolares com sete anos já feitos. Na metade do ano no mês de julho, as aulas haviam começado há tempo. 
No ano seguinte entrou na turma, segundo a idade e não como deveria ser pelo conhecimento. Não estava alfabetizada.
E, mais uma vez o destino foi cruel. Foi se alfabetizando quase que sozinha. Cópias e mais cópias.
Na mesma turma mais duas alunas na mesma situação. As aulas eram dirigidas aos outros alunos que eram a maioria em grau de escolarização igualitária.
Eram tempos muito diferentes. Criança não tinha muita vez. O que vigorava era: 
- De pequeno que se torce o pepino. Não deixe os filhos tomarem conta. Mostre que quem manda são os pais e os mais velhos.
No caso dessa casa, quem mandava e mandava mesmo era mãe. Senhora muito autoritária. 
O filho era uma necessidade da vida. E não um presente Divino. Por isso Deus fez o Homem e a Mulher.
Cresceu, formou-se, mas até hoje, tem muitas dificuldades na grafia das palavras. Com o dicionário ao lado e agora com o Computador se tornou fácil. Ele mesmo vai corrigindo. O medo de mandar um texto com palavras erradas, ficou no passado.
Embora todos esses desafios não acabaram com o desejo inato de se projetar na vida. Possui muitos livros publicados, em várias línguas. Com premiações nacionais e internacionais.
Falar e ainda falar em público, a vida ensinou. Se fez professora. Lecionou desde as salas multisseriadas, até a Universidade. A última aula, depois de 48 anos e seis meses foi numa turma de Engenharia da Computação na Sala M004. 
O escrever, a voz, o falar foi o carro-chefe da sua profissão.
Com muita dedicação venceu o medo do público. Não foi fácil. Muito suor e tremedeira nas pernas. Porém o que está escrito nas estrelas já está determinado pela existência.
Só foi preciso, ir seguindo o curso normal da Vida.
 Nunca se sabe com certeza o que vai acontecer. O futuro, a Deus pertence. Do desejo de falar, se tornou professora e muitos cursos foram ministrados para o povo de Deus, tanto nas escolas, bem como na Igreja.
Na escrita foi vencendo, corrigindo e assim continuar sonhando com um amanhã bem mais promissor. Hoje escrever é como um vício, se não for praticado faz falta. 
Mais uma vez ficou comprovado é só ir seguindo o rumo. Vencendo os obstáculos. Passando por cima das pedras ou ir empurrando-as para as bordas do caminho.
Talvez, se não fossem as contradições, teria chegado bem mais longe. Nunca se sabe com certeza.
O que passou, é passado, ficou nas brunas do tempo. Foi a parte do pesadelo que muitos sonhos proporcionam.

       

 


 




Conto publicado no livro "Sonhos parados no tempo " - Contos selecionados
Edição Especial - Novembro de 2020

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