Romilton Batista de Oliveira
Itabuna / BA

 

Só sei que foi assim

                

            Os que eram enviados para a direita iam para os campos de trabalhos forçados. Os que eram selecionados para a esquerda eram enviados para a câmara de gás… Eu estava na fila esquerda e fui levado para as câmaras de gás. Vi muitos ao meu lado a pedir socorro em diversas línguas, e eu estava lá. Vou contar-lhes o que vi e como sobrevivi…
            Lembro-me do momento em que eu e minha família saímos do fétido comboio e descíamos num lugar que hoje o chamam de Auschwitz-Birkenau. Foi tudo muito rápido. Havia milhares de soldados espalhados por todos os cantos, cães ferozes com desejo de vingança, treinados para matar, comer, devorar…. Os cães representavam o desejo de quem os adestrou. Eles são tão vítimas quanto todos os judeus, ciganos, poloneses, homossexuais, comunistas, prisioneiros de guerra soviéticos, Testemunhas de Jeová e deficientes físicos e mentais, além de tantos outros que a História não contou e que eu agora lhes conto porque eu estava lá. Eu vi com os meus próprios olhos que esta terra há de comer um dia! Tive que suportar tudo em um silêncio que jamais nenhum livro será capaz de contar nem nenhum filósofo com toda a sua sabedoria. Vi, convivi, vivi, sobrevivi e obtive o que nenhum ser humano será capaz de descrever por meio da palavra. A minha experiência é além do fenômeno visto a olho nu. A fenomenologia é precária em sua fonte nesse sentido porque a minha experiência, digo, a minha transexperiência atravessou o rio do esquecimento. Meu corpo foi totalmente tomado pela morte, mas minha alma não o foi. É por meio dela que venho à tona contar-lhe que existiram outras categorias humanas que lá estavam a sofrer com a lenta e rápida falta de ar que adentrava todo o nosso corpo. Homens vestidos por uma cor amarelada e ao mesmo tempo acinzentada que riam ao nosso redor, seres que pareiam não se importarem com o que estava a acontecer. Eles eram os únicos que não se queimavam. Tinham dentes estranhos em sua boca e seus corpos eram estranhos. Eram muitos que estavam ali. Também vi homens vestidos de forma incandescente que estavam ao redor de algumas pessoas como se fossem protetoras delas. Parecia que só eu os enxergava e eles sabiam que eu lhes enxergava. De mim, aproximou-se um desses seres incandescentes, vestidos por roupas alvas como a neve. Vi nossos corpos sendo levados para um lugar onde fomos queimados. E eu não me sentia sendo queimado, não posso entender o porquê, mas esta é a minha pura verdade. Deus me deu condição de ser a única testemunha que sobreviveu em alma viva ao inferno que foi Auschwitz.
Fui levado por rápidos instantes por um desses seres incandescentes a dois lugares, um era muito lindo, repleto de imagens que eu não poderia aqui descrever. Era simplesmente um lugar extraordinário, totalmente tomado por milhares de cores e de imagens infinitamente intocáveis. O ser incandescente também me mostrou outro lugar, este parecia com aquele grande depósito onde milhares de pessoas gritavam por socorro por meio de uma voz impossível de ser ouvidas, a gemer tocadas por um intenso fogo que os consumiam. Minha mente não suportou tal lugar. Era dominado por duas cores: amarelo e cinza. Causou-me um grande medo. Mas foi também rápido porque o ser incandescente logo me tomou pelas mãos e me mostrou quem estava comandando a mente de Hitler e seus aliados. Não pude vê-lo face a face, mas eu o vi de longe com o seu rosto e corpo deformado, tomado por um grande ódio da humanidade e do povo eleito de Jeová.
            Após alguns momentos, eu, Levi Paul Celan, consegui perceber que o ódio que Hitler sentia por nossa raça era exatamente o ódio que aquele ser asqueroso e nojento também nutria em sua mente doentia e infernal. O ser incandescente disse:
            Ainda tens alguma dúvida de quem está por trás de tudo isso. Satanás pediu a Deus que tocasse em seu povo eleito, e ele tocou. Muitos rejeitaram o grande sofrimento como jamais se via na história, mas muitos sabiam que havia um grande propósito celestial, e morreram sem perder ou abandonar a fé que tinham no Deus de seus antepassados. Deus perdoou até os que os haviam renegado. Todos os mais de seis milhões de judeus agora vivem no Grande e Eterno Palácio onde eu irei levá-lo. Eu não sabia o que pensar. Era um judeu que também indagava por qual motivo meus olhos viram tudo aquilo, por qual motivo um homem pode orquestrar tamanha violência. Agora entendi quando o ser incandescente me mostrou o verdadeiro rosto de Adolf Hitler, numa outra dimensão, fora desta terra onde o homem luta por ela, esquecendo que ele é apenas um transeunte que está sendo experimentado e testado para, depois, ser aprovado ou reprovado pelas Leis Eternas. O ser de vestes incandescentes também me mostrou vários seguidores de Hitler e os seus rostos eram outros, deformados e estrangulados em sua essência divina, eram, pelo que eu entendi aquilo que os humanos chamam de demónios…
            Sim. Agora entendi tudo. Minha alma agora está calma. Eu vi o lugar para onde foram levados todos os que sofreram no Holocausto, até os que se suicidaram dominados por uma dor que os impediam de pensar. Ao suicidarem, no meio do caminho, arrependeram-se, e logo foram absolvidos pelo Eterno Perdão. A quem julgue, na terra, que eles foram pro inferno! Tristes seres humanos que julgam os outros, sem ao menos conhecer o lado no qual eu estou agora.
Alegrei-me em ver toda a minha família reunida e todos aqueles que eu perdi de vista quando eu lá vivia num país chamado Hungria, apesar de meus pais nascido na Polónia, mas seus avós eram judeus, o que os fizeram também ser levados a Auschwitz.
            Sim. Agora estou feliz com o que vejo. Vejo um lugar onde todos são iguais, sem leis ou dominações humanas. Descobri que é a “chaga do poder” o verdadeiro “veneno” que enlouquecem os humanos na terra e os envaidecem em seus delírios capitalistas. Infelizmente, não posso mais retornar à Terra para avisá-los. Mas, posso aqui deixar escrito, nas mãos de alguém que eu escolhi entregar estas palavras, conhecido aqui neste lugar maravilhoso, aonde passei a morar, como Romadel, o poeta que escreve sob os rastros sublimes humanos, signos que descendem da obediência à voz que ele ouve, e que muitos não acreditam, mas saibam: há escritas que são resultado da experiência humana, mas há escritas que, além desse resultado experimental humano, reconhecem que há uma autorização divinal que rastreia seus pensamentos.
            Sim. Deixo, neste momento, o leitor que saberá ler nas entrelinhas desta história ou desta crónica, o dever ou o direito de nela acreditar. Acreditando, estarão adentrando no reino mágico e eterno da literatura que, como escrita-mãe, é multidisciplinar e emana da autoridade de um autor que se altera a todo momento por meio de uma alteridade que reside em seu interior. Fiquem em paz! Eu sou Levi Paul Celan, único sobrevivente que recebeu a honra de contar esta minha história. Eu era o que não era, agora sou o que eu jamais pensei que era… Sem crateras, catástrofes, traumas, quimeras de discursos partidos, não se prendam a partidos nem a discursos que se dissolvem rapidamente. Agarrem-se a vossas almas, elas é que atravessarão, são e salvas, o estranho e desconhecido lugar que os farão ser um “atravessador sobrevivente vencedor”!

 

 

 

 

 
 
Publicado no Livro "Só sei dizer que foi assim..." - Edição 2019 - Julho de 2019