Lourival da Silva Lopes
União / PI

 

 

Amor além do tempo

 

Era a cidade de sempre. Velhos casarões, ruas sem calçamento, praças em construção, a Igreja Matriz ao centro e no alto, a velha intendência e suas paredes rajadas, o mercado público, o grupo escolar, o posto médico, a loja de abastecimento, as quitandas, o porto do rio, os barcos, as canoas, os pescadores, os mendigos.
A cidade havia sido criada no início do século XIX, mas evoluíra muito pouco. A política era dominada pela família do fundador: o Conde d’Estanhar. A família numerosa e de muitas posses, inclusive de escravos – negros e brancos, dominava a cidade, de norte a sul, de leste a oeste. Era dona das grandes fazendas, onde se criavam todo tipo de gado e também se produziam os alimentos que abasteciam a cidade. Como não existiam escolas preparatórias e secundárias, o conde enviava os filhos homens para a capital com o objetivo de formá-los em Direito ou Medicina. As mulheres eram preparadas para o casamento, aprendiam prendas domésticas. O destino de cada uma era decidido pelo velho Conde. Dos dez filhos e filhas – sete homens e três mulheres - um se destacava por ser muito comunicativo e dado a discursos carregados de retórica aprendidos na Faculdade de Direito. Este conseguira junto ao Governo Imperial o título de Visconde d’Almar. Aos poucos, ganhara o respeito de toda a população. Tornara-se o substituto do velho Conde no comando político da cidade. Casara-se com a filha do Governador da Província com a qual tivera catorze filhos dos quais apenas oito sobreviveram a uma epidemia de gripe que acometeu a cidade.
O Visconde d’Almar, que assumira o posto de líder-mor da cidade, a partir de 1880, no alvorecer da República, torna-se o primeiro Intendente da cidade, em uma eleição indireta promovida pelos integrantes da Câmara Municipal, para um mandato de quatro anos. Com quarenta e oito anos de idade, tinha feições bem mais jovens. Como costume, usava um chapéu de massa e mantinha-se firme segurando uma bengala de carvalho trazida de Portugal. Estava sempre vestido de terno branco. Era um homem alto e forte, de voz grave e suave. Costumava fazer o trajeto de sua casa à Intendência à pé. No entanto, todo dia, tomava café na casa do compadre Zé da Inácia.
Uma das filhas de Zé da Inácia – a do meio – era uma jovem de um pouco mais de dezoito anos, de caminhar faceiro, meiga, de olhos ligeiros. Usava roupas simples, costuradas à mão pela mãe. O corpo bem delineado com as curvas perfeitas fazia qualquer roupa lhe cair bem. Sempre que o Visconde encostava para o café, era ela que lhe servia, com fineza e gestos muito delicados. Com elegância e muita educação, ele agradecia aos gestos da jovem cabocla:
- Muito obrigado, Luzia!
- De nada, seu Visconde.
A cena se repetia diariamente. O Visconde percebera que poderia se aproveitar daquela situação e marcar um encontro com a moça em uma de suas fazendas. Mandaria pegá-la de charrete e tiraria tudo a limpo. Sentira que ela estava afeiçoada a ele, que também se afeiçoara a ela. Entretanto pensava no compadre, na consideração, na amizade de longa data. Pensava também na mulher, nos filhos, no que poderia acontecer, nos comentários que a cidade faria, nas fofocas das rezadeiras, na língua do barbeiro da cidade. Ah, meu Deus, se o Prisco souber, a cidade inteira saberá.
O tempo aumentava a sua paixão, queimava a sua alma. Já não pensava mais em ninguém. Podiam falar o que quisessem.
Com ela acontecia a mesma coisa. Estava apaixonada pelo Visconde, quase trinta anos mais velho do que ela. Mas o que isso importa? O amor não mede distâncias, o amor acontece simplesmente.
Encontraram-se. Amaram-se. Transaram. Mas ninguém soube no início. Depois, os encontros se intensificaram e a paixão cada vez maior entre os dois. Era um escândalo na cidade. Ele era casado e tinha filhos. Além do mais, era o homem mais importante da cidade. Ela era pobre, solteira e muito mais jovem do que ele.
O barbeiro Prisco desconfiou e botou tocaia. Um dia, fez o flagrante:
- É verdade mesmo, meu Deus! Que loucura! Deus me livre! Prisco, não abre essa matraca! – e dava três batidas na boca.
Luzia, depois de algum tempo se encontrando com o Visconde, começou sentir enjoos. Estava grávida. O Visconde percebeu e se desesperou:
- Tenho que pensar em uma saída! Eu tenho poder, posso mudar essa história.
Pensou muito. Lembrou de um rapaz que morava em uma de suas fazendas. Ambicioso, pensava em ser uma pessoa importante da cidade. Gostava de confessar ao patrão a sua intenção. Chamava-se Danilo, de mais ou menos uns vinte e cinco anos. O Visconde foi conversar com ele, explicou a ele o que estava acontecendo e fez-lhe a proposta:
- Tu assumes a Luzia e o filho. Casa-te com ela no papel, vão morar juntos, mas não como marido e mulher. Só de fingimento. Ela continua minha. Em contrapartida, eu te dou um bom emprego, arranjo uma patente de capitão do exército e uma boa gleba de terra.
- Eu topo. Mas e ela?
- Vou conversar com ela e convencê-la.
O Visconde conversou com Luzia. Sem saída, aceitou. Casaria. Ficou tudo acertado como se Danilo a conhecesse há algum tempo e estivessem namorando. Acordo perfeito: atendia aos interesses das partes. Mas faltava Danilo conhecer a família da namorada. O Visconde intermediou tudo. Marcou o dia certo para o pedido de casamento. Data combinada, compromisso firmado. Zé da Inácia, no início, achou estranho, mas depois pensou na filha que já estava passando da idade de casar. Aceitou que casassem.
Casaram-se na Igreja, sob a proteção de Santo Antônio, que é o santo que promove os casamentos. Foram diretos para uma das fazendas do Visconde, preparada por ele com boa casa de varandas, mobiliada para os nubentes.
Conforme prometido, o Visconde conseguira o título de Capitão a Danilo e fizera, também, a ele doação de duzentos hectares de terra, com casa e algumas cabeças de gado. Danilo de agregado passou a ser um promissor fazendeiro e com título que representava poder naquele município.
As visitas do Visconde à casa do casal eram constantes. Fazia parte do acordo.
Tudo isso era acompanhado de perto pelo barbeiro Prisco, que montara todo o quebra-cabeça, planejado pelo Visconde.
- Tá na cara. Esse Visconde é danado de sabido. Esse menino é apenas um testa de ferro para esconder a safadeza dele. Gente rica safada. Além de abusar da amizade do compadre, ainda monta uma farsa. Mas eu tenho que ficar calado, senão sobra pra mim. É capaz até de me botarem na cadeia. Cala-te boca!
O tempo é senhor absoluto de tudo. As pessoas são apenas suas servas. Os dias passam e, na contagem do tempo, as coisas mudam. Danilo tratava Luzia muito bem, embora, como o acordado com o Visconde, não pudesse ter com ela nenhum contato, nenhum relacionamento. Luzia pertencia ao Visconde, continuava sendo sua concubina. Tempo demanda tempo, e as pessoas mudam, enxergam melhor.
Ao cabo de três meses, a situação já não era a mesma. O Visconde começou a sentir frieza em seu relacionamento. Luzia já não era a mesma apaixonada de antes. A sua barriga já dava sinais da criança que estava por vir.
- O que está acontecendo Luzia? Você não me parece a mesma.
- Nada, não, Visconde. Acho que é a gravidez.
O Visconde, mesmo desconfiado, aceitou a justificativa de Luzia. Mas as coisas haviam mudado. Uma nova afeição tomava conta de Luzia. A relação com Danilo prosperava, apesar de ainda não ter sido concretizada. Até o dia em que o capitão Danilo tomou coragem e chamou Luzia para conversarem. A conversa durou algumas horas, pois o assunto era muito delicado. Como ninguém é dono de seus sentimentos, as pessoas estão sujeitas a novos sentimentos. Luzia ouvia tudo e, uma vez ou outra, manifestava também seus sentimentos. Em um ponto a conversa convergia: os dois estavam se gostando. Daí a frieza com que estavam recebendo o Visconde em sua casa. O problema era comunicar a nova realidade ao Visconde. Ninguém podia imaginar qual seria a reação dele. Era um homem muito poderoso, tinha jagunços que poderiam vingar o patrão. Decidiram continuar o fingimento até encontrarem uma saída.
Passou-se mais um mês. Era final de maio de 1890. O inverno havia findado. Os campos da fazenda estavam cobertos por uma relva verde que servia de pasto aos bichos. Danilo preparara dois de seus melhores cavalos. A decisão estava tomada.
Em treze de junho, no dia de Santo Antônio, em que toda a cidade se reunia para a grande procissão que finalizaria os festejos, o Visconde chegou à fazenda, mas algo estranho lhe chamava atenção: a casa estava fechada. Apeou do cavalo, bateu à porta, bateu novamente, repetiu outras vezes e nada. Ninguém respondia.
- Estranho, não estão em casa. Não foram à cidade, senão teriam me avisado. Não! O que terá acontecido? Será que Luzia sentiu alguma coisa?
Danilo e Luzia se assumiram. Amaram-se. Tornaram-se cúmplices. Amalgamaram-se. Fugiram do perigo. Largaram suas vidas do passado, suas ambições, suas legendas. Foram construir outras vidas, em um lugar bem distante, que nem o barbeiro Prisco, senhor de todas as vidas, pudesse imaginar. Sumiram no tempo, pois o amor não tem tempo e tudo pode.
Encontraram o amor e se encantaram para sempre.

 

 

 

 
 
Publicado no Livro "Toma lá!!! Dá cá!!!" - Edição 2018 - Janeiro de 2019