Rozelene Furtado de Lima
Teresópolis / RJ

 

 

A porta

 

Uma das manias de Samuel era sonhar acordado, usava a imaginação como se fosse uma ferramenta para lapidar a felicidade.  Em todo tempo livre, lá estava ele a sonhar a dar vida aos personagens que criava. Trabalhava como ajudante de caminhão. Vez por outra tinha a função de chofer. Num desses dias que tudo acontece, ele teve que dirigir o veículo, colocar e tirar a carga, pois o parceiro ficou doente. Uma propriedade muito antiga foi demolida e ele teria que levar o resto aproveitável para um depósito da firma. Num canto estava uma porta de madeira maciça com medidas fora dos padrões normais. Tentou pegá-la, mas a porta era muito pesada, teve que fazer um esforço sobre humano, amarrar com cordas, colocar uma base para acomodá-la no fundo da carroceria. Pela manhã Samuel comunicou ao parceiro que tinha ficado uma porta no caminhão sem descarregar. - Vamos ter que passar pelo depósito e deixar essa porta. – Vai ficar muito fora de mão, hoje temos que carregar areia. O encarregado da demolição quando foi avisado que teria pagar mais um frete por causa de uma porta, perguntou: - Você está precisando de uma porta? Pode ficar com ela para você, é uma porta grande desengonçada sem valor.  O rapaz disse para Samuel: - A porta é sua, no meu apartamentinho ela não cabe. Samuel descarregou a porta, colocou-a em pé no fundo do galpão e deixou para lá. Meses depois ele passou por aquele canto e bateu com o joelho com muita força na ponta da porta. Samuel dormia no colchão no chão e quando foi deitar não conseguia dobrar o joelho por causa da pancada na porta. Chamou o pai, fizeram quatro pilhas de tijolos, e a tal porta foi para cima das pilhas entijoladas e a cama ficou excelente. E a partir daí Samuel começou a ter sonhos interessantes que contava ao seu pai: - Pai, sonho que moramos numa casa muito rica, com jardim e tenho três filhos lindos que brincam com a minha mulher; você e mamãe estão por perto e felizes. – É preciso sonhar para poder realizar. Sonhar acordado é diferente. Primeiro vem o sonho e a ideia, a forma vem com o tempo e tempo depende da intensidade com se sonha. Todo sonho passa primeiro pela imaginação antes da materialização. Quem não sonha fica a mercê da casualidade, concluiu o pai de Samuel.
O rapaz apaixonou-se, alugou uma casinha na mesma rua. Casou-se. A mãe resolveu fazer do quarto dele o quarto de costura. - Vamos tirar aquela porta de lá, ocupa muito espaço.  Resolveram cortar a porta ao meio para fazer um portão de entrada. Colocaram a porta para fora da casa, em posição para o corte, quando um raio de sol incidiu numa lateral da porta, faiscou um brilho irisado igual quando um brilhante é exposto à luz.  O rapaz percebeu que tinha uma pequenina fresta no lugar onde brilhava. Pegou o canivete e devagar com muito cuidado como se fosse um cirurgião, forçou a gretinha e viu que tinha uma tira de madeira de encaixe que foi cedendo à pontinha da lâmina. Saiu o fino, firme e comprido filete e que para o espanto deles, revelou uma fechadura dourada. Seu Carlos notou que na parte debaixo tinha um pequeno quadradinho. Mais uma vez a pontinha da lâmina do canivete funcionou. Retirado o pequeno pedacinho de madeira, apareceu a chavinha. Os dois admirados com tamanho engenho não poderiam supor o que teria debaixo daquela almofada de madeira que deveria medir 1,90cm por 1,70cm. A almofada nada mais era do que uma porta dentro da outra.  Passou um arrepio por eles quando viram a data perto da fechadura (MDCLXXIV). Com os corações descompassados levaram a porta para dentro e foram abrir no antigo quarto. Estavam sós em casa e num momento desses quanto menos pessoas estiverem por perto melhor, olhos demais só atrapalham e na maioria das vezes distorcem a verdade. Com a mão trêmula Samuel colocou a chave na fechadura, torceu lentamente, puxou devagar e suavemente. Abriram a porta almofada. Os olhos arregalados e as bocas entreabertas, num misto de pavor, susto e surpresa.  Não conseguiram fazer um som, as gargantas estavam apertadas de tanto assombro.  Nunca poderiam imaginar o que tinha dentro da rejeitada e disforme porta, que mistério ela guardava por tanto tempo! Toda descoberta vem acompanhada de uma mudança radical, mas aquela era demais! Mexeria com toda vida deles. Fecharam a almofada, isto é, a porta menor, trancaram, guardaram a chave no mesmo lugar, repuseram o colchão e saíram para o quintal. Que fazer agora, qual atitude tomar, com quem se aconselhariam? - Amanhã a gente conversa, não vamos falar nada para nossas mulheres, seria um peso muito grande para elas guardarem um segredo desses, comentou o pai. Na manhã seguinte, eles voltaram e conferiram o que tinham visto, era verdade mesmo! O mistério da modificação a alucinante magia do sonho irreal para o real. É preciso sonhar, reter o sonho por algum tempo na imaginação e soltá-lo no espaço para que encontre o templo da materialização. Uma estante, com várias prateleiras subdivididas em caixinhas de 15 cm. E as três últimas prateleiras com as caixinhas de 30cm. As pequeninas gavetas eram todas trabalhadas com o mesmo símbolo, parecia um brasão. Samuel puxou com muito cuidado a primeira gavetinha, tinha saquinhos de um material de seda finíssima, que protegiam anéis belíssimos com pedras trabalhadas, brincos, colares, broches, enfeites de cabelo, braceletes, correntinhas, medalhas e tiaras. Nas gavetinhas maiores brilhavam barras de ouro e duas coroas reais divididas em duas partes com abertura para encaixe. Tão lindas tão esplendorosamente faiscantes que chegava ofuscar as vistas num brilho intenso e surpreendente! E foram abrindo uma por uma. Moedas, muitas moedas grandes douradas. Depois que foram encontrados pelos bafejos da fortuna continuavam abobalhados e amedrontados. As imagens não saiam da cabeça, reluziam como se o sol cintilasse dentro do cérebro. Sem saberem o que fazer, o rapaz saiu muito cedo, e encontrou o pai no caminho. Que é que vamos fazer? O pai respondeu: - Peguei um anel bem desenhado e pensei em levar na joalheria e perguntar quanto vale. – Mas se ele perguntar como é que temos esse anel? - Vamos dizer que é uma joia que está em família há muito tempo, foi passando de geração em geração. O joalheiro quando examinou a joia ficou atônito: - é uma joia muito valiosa, como conseguiram? Eles falaram o combinado. - Acho melhor vocês irem a um joalheiro da cidade, eu conheço um que é gemólogo e especialista em análise de joias raras, foi meu professor, vou ligar para ele.
Já estavam sendo esperados na joalheria da cidade. Depois de examinar a riquíssima peça o joalheiro falou:- Essa peça não tem preço, data do século XIII. E naquela época toda joia feita para a realeza tem incrustado o selo real, como tem nesse anel. Pertenceu a uma Casa Real e tenho quase certeza que é um o Brasão de um país nórdico. Vou entrar em contato com uma Embaixada que fica aqui perto.  Logo depois chegou um funcionário que os levou até o Cônsul que os conduziu ao Embaixador. Seriam avisados assim que tivessem uma resposta. E foi pedido a eles sigilo, o silêncio resseca a alma. Dias depois foram procurados e disseram que o tesouro encontrado pertenceu ao rei Dom Fulano... Que morreu numa guerra e a família refugiou se num país vizinho e nunca mais tiveram notícias deles.  Pai e filho cada vez mais temerosos e cobertos pelo preconceito da ignorância de ter em poder um tesouro real de tamanha importância resolveram mostrar a valiosa peça de madeira e contar toda a história daquela porta.  Se um anel já tinha movimentado tanta gente um enorme tesouro foi um verdadeiro estardalhaço. Joias que têm a qualidade de emudecer quem as olha. Terminada a investigação que envolveu especialistas, estudiosos e historiadores que chegaram à data em que um dos herdeiros chegou ao Brasil, construiu um castelo em lugar ermo e viveu sem grandes alardes. O valiosíssimo tesouro voltou para o Museu Nacional do país de origem onde permanece em exposição. Samuel e a família receberam uma recompensa em dinheiro que daria para viverem muito bem e uma quantia mensal para o resto de seus dias até a décima geração. O que Samuel nunca conseguiu entender foi: - Por que essa porta foi parar em suas mãos? Sorte, acaso, merecimento, destino, ou por que ele era um grande sonhador?

 

 

 

 
 
Publicado no Livro "Toma lá!!! Dá cá!!!" - Edição 2018 - Janeiro de 2019