Fernando Magaldi
Belo Horizonte / MG

 

 

Esconderijo da felicidade




           A janela que dava para o poente estava aberta. Por ela, os últimos raios de sol de mais um dia de outono cismavam em trazer um pouco mais de vida àquela morada. O relógio de carrilhão começou a soar as seis badaladas que, naquele momento, dividiam o dia da noite, apesar de a penumbra ainda demorar alguns longos minutos para engolir e vestir de trevas aquele pedaço de mundo.
           Encolhido num canto ao lado de um surrado sofá de couro, Tarik parecia olhar para o nada, à procura do que não perdera. Como uma estátua de mármore ou um boneco de cera, não deixava transparecer qualquer emoção. Parecia ter entrado em transe ou sofrido um choque de difícil recuperação. Esticado a seus pés, o vira-latas, preto como asas de graúna, parecia guardar e proteger seu melhor amigo. Vez por outra levantava a cabeça, procurando auscultar algum perigo, para, em seguida, voltar a seu estado de inércia.
           A passos medidos Abu foi se aproximando, galgando os degraus da escada que levavam a uma varanda, onde tudo dava mostras de há tempos não ter sido tocado por mão humana. Passou a mão sobre uma mesa e a fuligem trazida pelo vento, a cobriu de cinza. As plantas mais distantes do parapeito estavam ressequidas, enquanto uma orquídea Vanda parecia buscar forças para encontrar um pouco de umidade, depois de vários dias sem chuva e sem receber qualquer trato.
           Aproximando-se mais da porta, não se preocupava em sair do raio de visão de Tarik, que tinha a seu lado sacos vazios de alimentos industrializados, alguma bebida e copos. Uma vasilha ainda exibia restos de leite e outra algo como ração canina. Pôde ver melhor, espalhados pelo aposento, não estavam apenas copos, latas de cerveja e de refrigerante, potes de alimentos vazios e sujos, onde moscas procuravam alimentos.  Em cada palmo de chão, em cada pegada humana ou de outro ser, em cima de cada móvel, em todos os lugares, estavam fragmentos de vida.
           Decidiu invadir aquele espaço como a muito não fazia. O vira-latas rosnou ameaçador e se pôs em posição de guarda e ataque. Abu chamou-o pelo nome e assobiou. O cão mudou de postura e correu para o visitante. Pôs as patas à altura dos quadris de Abu, como a lhe pedir um abraço de socorro ou querer dizer algo. Abu cochichou, fez alguns afagos no animal que pareceu compreender e correu para a entrada da porta, onde retomou a posição de guarda.
           Tarik parecia ter encolhido de seus quase um metro e oitenta e porte atlético, para poucos centímetros. Parecia uma criança assustada que temia ser repreendida por algo que fizera ou fora traumatizada por alguma pessoa ou acontecimento nefasto.  Seu olhar continuava perdido sem expressão.
           Abu puxou uma cadeira e, em silêncio, se sentou de frente para Tarik. Durante longos minutos, que podem ter sido poucos, ficou ali, como a respeitar a situação ou se ainda não tivesse encontrado as palavras certas para o momento oportuno. Procurava não olhar para o jovem, mas não desviaria o olhar se este o chamasse. Não seria o primeiro a começar o jogo, porque as peças brancas não estavam com ele.
           Tarik deu sinal de estar de volta para ali. Esticou as pernas e os braços... Respirou funda e ruidosamente... Olhou em volta. Quando seu olhar cruzou com o de Abu, procurou desviar e pousá-lo no chão. Este continuou sentado e mudo como uma estátua de bronze em posição de reflexão. O tempo parecia correr como bicho preguiça.
           “Faz tempo que chegou?”, perguntou Tarik.
           “Cheguei depois de que precisava e antes de ser muito tarde”, respondeu. Era mais ou menos isso que o jovem estava sempre acostumado a ouvir daquele homem que, desde sempre, lhe deixava tirar as conclusões. Era postura que o irritava momentaneamente, mas, de pronto, descobria o significado.
           Tarik se levantou. Em silêncio saiu da sala. Alguns minutos depois voltou com os cabelos molhados e o rosto cheirando a sabonete de erva doce.  Puxou uma cadeira sentou-se bem próximo de Abu que continua em sua posição de estátua. Passou a mão sobre seu ombro e se encostou em seu peito e começou a falar baixinho como se não quisesse acordar alguém que dormia candidamente ao lado ou contasse um segredo que nem o copo de cerveja pudesse ouvir.
           Falou durante muito tempo. Vez por outra, Abu balançava a cabeça ou passava a mão na cabeleira de Tarik, sem dar mostrar se aprovava ou não. Apenas ouvia. Assim fora sempre. Tarik, às vezes, brigava por querer soluções prontas. Mas, no momento, isso era o que menos contava. Ele sabia que Abu sempre estivera presente, nunca lhe faltara. Vivia uma situação delicada e inesperada. Naquela situação não contava com a presença física dele. Isso lhe doera intensamente.
           Agora ele estava ali, com a camisa 13 do Galo, a bermuda creme e as havaianas surradas e gastas pelo tempo. No celular, uma foto da última viagem a Natal. No olhar, a compreensão. Era falante em festas e brincadeiras. Em momentos de tensão, era de poucas mas profundas palavras. O importante é que ele estava ali, a seu lado, dando o apoio que nunca lhe negou apesar do tempo, da distância e da vida.
           “Sempre soubemos onde a felicidade se esconde e onde mostra toda sua pujança. Não deixe isso morrer comigo”, sussurrou, batendo no peito de Tarik, que sorriu agradecido.
O vira-latas se aproximou. Carinhosamente, Abu retirou a mão de Tarik de seu ombro e colocou sobre a cabeça do cão que rosnou feliz. Levantou-se. Como se pernas não obedecessem seu cérebro, cambaleou. Pôs-se firme de novo. Caminhou até a porta e como um raio de luz que se apaga foi engolido pelas trevas.

 


 




Conto publicado no livro "Vivendo e aprendendo " - Contos selecionados
Edição Especial - Dezembro de 2020

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