Iza Angel
Quatro Barras / PR

 

 

A viagem de Maria

 
            Não foi desejada, simplesmente necessária...
            Em 1971, Maria, professora da Escola Estadual Nilson Ribas, do município de Cornélio Procópio, no estado do Paraná, adoeceu. Os sintomas eram de gripe, com muita tosse e dores nas costas. 
            Antonio, o esposo, foi até uma farmácia e comprou um vidro de xarope indicado pelo farmacêutico, para amenizar a tosse. 
Aconteceu justamente o contrário, a  tosse aumentou e as dores também.
            Diante do ocorrido ela marcou uma consulta com o médico do posto de saúde. Após a consulta o médico pediu que fizesse um raio x dos pulmões. No resultado apareceu a suspeita de tuberculose. O médico pediu outros exames complementares e foi constatada a doença nos dois pulmões. 
           Diante disso, o médico do posto de saúde pediu exames para todos membros da família. Felizmente nenhum deles adquiriu a doença. 
           Eram três crianças, o mais velho tinha apenas quatro anos, a menina três e o caçula apenas nove meses. Foi preciso deixar os filhos com parentes para fazer o tratamento necessário.
            Como o médico indicou, Maria foi encaminhada para o Sanatório da cidade de Londrina, especialista nas doenças pulmonares, que realizava os exames necessários no laboratório local.            
           No sanatório existia uma rotina diária e semanal a ser respeitada e seguida, conforme orientação dos profissionais de saúde ali atuantes. 
            Eram estipulados horários para acordar, tomar sol, tomar banho, almoçar, repousar, tomar as medicações, receber visitas, se dedicar à trabalhos manuais, lanchar, e outras. 
            Como uma das enfermeiras estudava e estava passando por dificuldades na disciplina de matemática, pediu que Maria lhe desse algumas aulas, pois ficara sabendo de sua habilidade nesse conteúdo. Maria concordou e passou a ministrar aulas para a enfermeira.
            De início tudo corria bem, todos acreditavam que com três meses de tratamento Maria voltaria pra casa, e continuaria o tratamento, sob orientação dos profissionais da saúde local. Faria os exames com o acompanhamento do médico do posto de saúde. Contudo, não foi o que ocorreu. Os exames mostraram justamente o oposto. Maria passou por muitas contrariedades nesse tempo devido às notícias, sobre fatos que estavam acontecendo com seus filhos e também pelo comportamento de Antonio. 
            Tudo chegava ao seu conhecimento. Antônio deixou o emprego e levou a mudança da família para a casa dos pais, na cidade de Santo Antônio da Platina. Essas notícias desagradáveis trouxeram tristeza e agravaram mais a saúde de Maria. Foi constatado que o bacilo se tornara resistente aos medicamentos em uso. Os médicos foram obrigados à mudar as medicações e receitar uma segunda linha mais forte e agressiva, a qual também exigiria um tempo mais longo de tratamento.
            Alguns dias após a mudança na medicação, Maria começou analisar tudo que estava ocorrendo em sua vida. A ida para aquele sanatório, a situação em que se encontravam os filhos, cada um em uma casa diferente, e ainda para completar Antonio gastava o salário da esposa, que estava de licença para tratar da saúde, em jogos e bebidas na companhia de amigos. Para piorar a sogra de Maria foi visitá-la e levou o filho caçula, o qual chamava a avó de mãe. Foi mais um choque que levou. Sua análise sobre todos os acontecimentos naqueles anos de casada, a fizeram constatar que estava tudo errado em sua vida e que a única riqueza que possuía eram aquelas crianças que tanto amava. Percebeu que Antonio era apenas um peso que carregava, e que não merecia a menor atenção. Seu cérebro começou a pensar, pensar, e pensar... Sem parada, mil coisas passavam naquela cabeça. De repente ela começou a agir totalmente fora de si, contra todos princípios que possuía. Fazia coisas que nunca faria em seu estado normal. Quando caÍa em si, a respeito do que praticara, ficava indginada, e passava horas a escrever para a amiga que mais confiava. Aquelas cartas acalmavam seu coração. Passava pouco tempo, retornavam os pensamentos... Uma verdadeira loucura, já não conseguia saber quem era e nem porque estava ali. Entrava no lugar destinado às enfermeiras, pegava as medicações, não sabia o que fazer com elas, fazia as mais variadas coisas que não eram de sua competência.Em outras ocasiões pegava os utensílios de limpeza e saía como se fosse a faxineira, querendo limpar os quartos e banheiros. Logo voltava a si - sentia como se o mundo estivesse desabando. 
            Diante de suas atitudes, os responsáveis pelo bom andamento do sanatório resolveram amarrá-la na cama, para evitar que os demais doentes ficassem assustados com as atitudes que seu corpo tomava, pois na verdade ela não era a dona das próprias ações. Tudo que fazia nesses momentos, não fazia parte do seu ser, eram ações sob comando de outro, ou outros espíritos... 
            O fato é, que quando se sentia dona de suas ações, entrava em desespero. Sim, desespero, pois não há nada mais desesperador do que perceber que está agindo fora dos próprios princípios, daquilo que é o mais sagrado.
            Como retornar para casa; como uma boneca vazia? Despida de valores, sem serventia? A situação era desesperadora...
            Depois de algum tempo amarrada naquela cama, as enfermeiras acreditaram que Maria estivesse melhor. Resolveram soltá-la. Mas, assim que pôde saiu pelos corredores do sanatório, e na frente das pessoas que encontrava fazia uma série de gesticulações e fornecia um sorriso gratuito.
           No seu estado,  imaginava que com aquele gesto se purificava de tudo que fez anteriormente. No seu intelecto ficou gravado, como se aquele espírito que tinha tomado seu corpo, estivesse se libertando das trevas em que vivera, e demais coisas ruins que praticara no passado, e que permaneciam ao redor.
            Diante dessas atitudes, as enfermeiras perceberam que ela estava cada dia pior. Além disso, Maria não conseguia falar uma palavra sequer, estava completamente muda. Foi tomada a decisão de enviar a doente para consultar um médico psiquiatra. Informado sobre as atitudes e ações da paciente o médico nem mesmo a examinou. Simplesmente deu uma receita para a enfermeira e a encaminhou de volta ao sanatório. 
            Passou alguns dias melhor, depois voltaram as atitudes fora da realidade. Então os médicos encaminharam a doente para uma casa de saúde que era especializada em tratamentos de diversos casos de doenças mentais. 
            Assim que chegou, Maria foi recebida pelo médico que lhe fez uma única pergunta:
            - Qual é o seu nome?
            - Maria.
            - Então você veio aqui para receber alguns auxílios, vou tratar do seu caso.
            As palavras do médico foram para Maria como um bálsamo, preencheu seu ser de esperanças.
            Logo ela foi colocada em um quarto isolado que tinha três orifícios no alto de uma das paredes por onde entrava claridade. Na porta, uma pequenina janela onde podia ser observada. Que também era usada para receber medicação.
            No local havia apenas um colchão forrado com um lençol e um travesseiro. 
            Maria estava tão desorientada que não sabia como proceder. Não sabia sequer como agir diante das necessidades fisiológicas do organismo.
            No dia seguinte mudaram a doente de quarto. Este, semelhante ao anterior, contudo, no chão estava um amontoado de capim. Ela passou horas separando os fios grossos dos fios finos. Em sua ideia era como fosse encarregada de fazer a separação das coisas boas existentes das coisas ruins. Todos os dias era observada e sempre uma atendente anotava as principais coisas que fazia, para serem analisadas pelo médico. 
            Ela ficou em tratamento durante um pouco mais de cinco meses na casa de saúde. Durante o tratamento, acontecia reuniões terapêuticas com diversos outros doentes, o médico durante essas reuniões falava sobre as qualidades e afazeres de cada doente presente. Era como se ele,  estivesse reafirmando as qualidades e talentos de cada um. Uma vez  por semana alguns doentes recebiam eletrochoques. O mais interessante era que a maioria dos que passavam por esse tratamento, após receber o choque saiam da sala em repouso, completamente adormecidos. Isso não acontecia com Maria, saia da sala andando normalmente, como se o choque não causasse qualquer efeito.
            Sempre que o médico falava que Antonio viria para visitá-la, Maria se negava a receber a visita do marido. Não queria nem mesmo trocar uma palavra com ele.
            Durante o tratamento, Maria passou a entender tudo que estava acontecendo ao seu redor. O psiquiatra conseguiu trazer Maria para a realidade de sua vida. Ela percebeu que Antonio conseguiu convencer o médico do amor que devotava por ela. Concluiu também que não iria receber alta se continuasse afirmando que iria se separar de Antonio. 
            E, para completar sentia muitas saudades dos filhos. 
            Foi essa imensa saudade, que a fez retornar para casa com Antonio para tomar rédeas de sua própria vida, a fim de ter força suficiente para conseguir a separação tão necessária para viver em paz, no seu trabalho e com seus filhos...
            Essa viagem, não planejada, foi tudo que Maria precisava, para sentir o quanto aquele homem, com quem se casara, não lhe fazia bem, nem mesmo aos filhos...


 


 




Conto publicado no livro "Vivendo e aprendendo " - Contos selecionados
Edição Especial - Dezembro de 2020

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