Maria José Zanini Tauil
Rio de Janeiro / RJ

 

 

Vivendo e aprendendo


            E foi assim que, de repente, descobri que não sou imortal. Por um fio,  a gente vê, como um filme, os grandes momentos da nossa vida,  sob nossos olhos esgazeados, voando como nuvens.
            De um dia para outro, passos trêmulos, corpo sem força, pernas carregando duzentas toneladas em cada uma. Pressão altíssima e oxímetro marcando 83. Hospital imediato. Exames e uma tomografia revelando 50% dos pulmões tomados pela pandemia do coronavírus. Assim, de repente, quase de imediato.
            Não saía de casa para lugar algum. Se acaso saísse, lavava as solas dos sapatos e deixava secando na área. A roupa era tirada e colocada ao sol e depois, mãos lavadas com sabonete líquido mais o álcool gel na finalização. Máscara descartável jogada fora e rosto bem lavado e untado com um hidratante. Filhos e netos? Só por telefone e vídeo chamada. Um ano de afastamento, solidão, saudade e uma incrível vontade de abraçar bem apertado.
            Não moro só. Tenho marido e a empregada Fátima. Ela dorme aqui para evitar o horror dos ônibus pela manhã. Meu marido faz compras ligeiras que são lavadas e cuidadas por ela.
            E lá fui eu, lançando um último olhar sobre meu apartamento, meu quarto, meu aconchego de leituras, escritas, orações, tevê e música.  Voltaria? Naquele momento, entreguei nas mãos de Deus.
            Não é por ser de oração, que não tive medo. Sim, tive muito e outros fatores contribuíram para isso. Fui parar numa UTI com duas camas. Havia uma senhora. Uma cortina nos separava, mas entre nossos espaços, uma televisão. Por ter sido a primeira a chegar, ela se fez dona do controle remoto.
            Dona Sonia  estava pior que eu e tinha marca passo. Chamava enfermeiras a todo instante para reclamar de tudo. Era sempre pega sem a máscara respiratória e, inevitavelmente, levava broncas. Nada lhe dava medo. Acho que queria morrer.
            A tevê ficava ligada 24 horas na Globo News. Logo no primeiro dia, soube que uma prefeita eleita no sul,morreu de covid (mais nova que eu!). Soube também que um ônibus caiu de uma ponte em Minas e 19 pessoas morreram. Também duas inocentes meninas foram baleadas e, cruelmente mortas, no Rio.
            Você já imaginou uma cabeça doente e não sofrendo de surdez, ouvindo tudo isso, repetidamente, o dia inteiro? A pressão foi a 22 por 14. Fazendo jus à minha depressão, tive ataque de pânico. A cabeça latejava, mal abria os olhos. Gritei: “Abaixe esse volume, pelo amor de Deus!”  - Ela não atendeu e reclamava...reclamava.
            No dia seguinte, pedi para chamar uma médica e falei baixinho. Com jeitinho, durante um cochilo da doente, ela pediu para retirarem uma peça do aparelho. Isso não impediu que dona Sonia  exigisse conserto, entre um ataque de tosse e outro, gritando aos quatro cantos, com voz engasgada, o preço do seu plano de saúde. No terceiro dia, fui transferida para o quarto. Sozinha, porém protegida pelos anjos da saúde, esses abnegados profissionais que põem a vida em risco e não são valorizados.
            Pela própria tevê do meu quarto, num canal de entretenimento, soube que o ator Eduardo Galvão, de 58 anos, estava ali, na UTI ao lado, com  um quadro idêntico ao meu. Morreu no domingo. Que doença é essa, que poupa uns e leva outros? Meu marido teve junto comigo, é mais velho, mas não teve mais que uma tosse seca por dois dias.
            Depois de 14 dias, a grande notícia da alta, continuação de medicamentos, fisioterapia respiratória. Meu quarto, meu castelo branco, meu paraíso. Que Deus maravilhoso!
            As tempestades da vida sempre trazem valiosas lições. Recebi a minha. Todo depressivo tem mania de dizer que já viveu o suficiente. Não vivi, não! Amo mais a minha família e amigos e valorizo-os muito pela preocupação e pelas orações .
            Descobri que me amam demais e Deus, muito...muito mais!  Ele ainda espera de mim grandes feitos e minha modesta contribuição para tornar esse mundo menos rude, mais ameno, mais humano e fraterno.


 




Conto publicado no livro "Vivendo e aprendendo " - Contos selecionados
Edição Especial - Dezembro de 2020

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