Alberto Magno Ribeiro Montes
Belo Horizonte / MG

 

 

A língua de Dona Enezita

                

           

Dona Enezita era uma mulher que falava mal de tudo e de todos. Para ela, nada, nem ninguém  no mundo estava certo.  Muito conversadeira, sabia da vida de todos e fofocar era seu passatempo favorito. Tinha uma língua afiada, que, como uma cobra, estava sempre pronta pra dar o bote. Desde criança era assim, com seus pais, professores, vizinhos... Certa vez, seu pai lhe pôs de castigo, cara contra a parede e ela simplesmente ficou uns minutinhos e saiu de casa correndo, xingando Deus e todo mundo. Após algumas horas, voltava, e aí já viu, né! A “correia” de seu pai a esperava. Mas ela não se importava, enfrentava o castigo esperneando e gritando, mas não dava o braço a torcer e como num círculo vicioso, continuava a aprontar e a ser castigada.
            Uma vez, a professora chamou sua atenção porque ela estava assoviando na sala de aula, atrapalhando assim os colegas que queriam estudar. Como não parava e ficava rindo, debochando da professora, foi enviada à diretoria e quando a diretora lhe falou que ela estava prejudicando o bom andamento da aula, ela riu bem alto, fez careta, colocou a língua pra fora e depois disse: pessoas como eu é que garantem seu emprego, seu salário. Se todos fossem bonzinhos e comportadinhos, não precisaria de diretora, de supervisora, nem nada…Resultado: três dias de suspensão, pelo atrevimento.
            Um vizinho dela tinha uma filha que estava namorando e sempre que o rapaz ia em sua casa, eles ficavam conversando na varanda (naquela época era costume isso). Ela os espiava por cima do muro, entre as folhagens das árvores, sem que eles percebessem e depois espalhava pra todos que viu os dois se abraçando e beijando, naquela esfregação toda. Isso os deixavam constrangidos, principalmente perante os pais dela, que achavam que eles eram “comportadinhos” quando ficavam sozinhos…
            Quando ficou adulta, decidiu que queria casar e ter filhos. Assim, acabou casando-se com um lindo homem, mas não demorou e o “perdeu” para uma “vizinha safada”. Divorciou-se e casou-se novamente com outro belo mancebo e o caso se repetiu; dessa vez a secretária dele foi a culpada. Então saiu decidida a procurar outro homem que lhe realizasse o desejo de ter filhos, pois com os dois primeiros “nem deu tempo”, dizia. Por precaução, resolveu procurar um homem pobre e “beeemm feio”. Quero ver se alguma mulher “sem vergonha” vai querer roubá-lo de mim, dizia a si mesma. Um dia estava em frente a sua casa, varrendo a calçada e viu uma carroça vindo em sua direção e observou que o carroceiro era feio demais. Pobre devia ser, pelo estado da carroça…Deu um estalo em sua cabeça e ela disse pra si mesma: É esse!!!  Não deu outra e dentro de um mês estavam casados. Foi o melhor casamento dela, o único  que deu certo, pelo fato de nenhuma mulher ter “importunado” seu marido, até que um dia, a morte o levou, sem que ela realizasse o sonho de ser mãe. Morreu atropelado, ela dizia a todos. Culpa daquele motorista bêbado, que eu torço para que vá logo pro  colo do capeta. Aquele desgraçado tem que pagar pelo que fez…
            Sempre que via uma uma mulher namorando um homem bonito ela logo dizia pra ela: Cuidado! Olho nele!!! Não quero generalizar, mas homem bonito não presta, vai atrás de qualquer vagabunda que lhe dê bola! Melhor fazer como eu e procurar um bem feio, que ninguém queira! Pense bem: você, provavelmente vai querer ter filhos e dentro de poucos anos, estará como corpo todo caído, os peitos encostando no umbigo. Você acha que o bonitão vai querer continuar com você? Homem não se desgasta tanto fisicamente, como a gente. E mesmo que esteja desgastado, sempre vai aparecer uma sirigaita interessada. Sabe como é que é, né? Aí ele vai é procurar outra “em forma”, pois a única mulher que sabe onde o marido está, é a viúva…Vai por mim, que tenho experiência nessas coisas! E com isso a mulher ficava desanimada, com aquelas palavras vindas de alguém que ao invés de falar coisas positivas, só sabia fazê-la perder o ânimo.
            Se via uma mãe abraçando seus filhos, toda zelosa, naquele carinho todo, ia logo dizendo para ela: Não são todos, mas geralmente filhos são o que há de mais ingrato no mundo. Quando são novos os pais fazem tudo por eles, passando o maior sacrifício. Depois que se tornam adultos e seus pais ficam velhos, não podem nem mesmo pensar em contar com eles. Querem mesmo é saber de cuidar de suas vidas… Dão desculpa que não têm tempo de cuidar deles, que dão muito trabalho e despesas, etc. Resultado disso tudo: colocam os pais no primeiro asilo que encontram. E nem vão visitá-los, na maioria das vezes…
            Um vizinho dela tinha um filho que se envolveu com drogas, apesar de todos os conselhos que recebeu da família e da vizinhança, inclusive dela. Certo dia, num confronto com a polícia, foi preso, após assaltar a padaria do bairro, para pagar a dívida que tinha com um traficante. Deveria é ter morrido, dizia D. Enezita. Mas como isso não aconteceu, tomara que sofra muito e apodreça na cadeia para aprender…Não quis ouvir os conselhos bons que recebeu, aí tem mesmo é que se fud… (também gostava muito de falar palavrões, isso era outra marca registrada dela).  
            Um  dia D. Enezita morreu. Foi enterrada no jazigo da família e após uns dez anos, quando outro membro da família faleceu, tiveram que fazer a exumação, para que o mesmo fosse enterrado. O coveiro recolhia os ossinhos um por um e colocava numa pequena urna, com o nome dela e que posteriormente seria fechada com um cadeado. Ao recolher o crânio percebeu que havia algo mole dentro dele, vermelho, meio gosmento…  Foi então que descobriu que aquilo era a língua da mulher. O jeito foi fazer a cremação daquela língua ferina, que nem os vermes quiseram devorar. Levou horas, mas depois o que restou foi um trem duro, tipo um pedaço de carvão, bem preto. Nem cinzas a tal língua  virava… Então o jeito foi deixar aquilo na urna, junto com os ossos recolhidos e… trancar bem!

 

 

 

 

 
 
Publicado no Livro "Vox populi, vox Dei" - Edição 2019 - Agosto de 2019